terça-feira, 24 de maio de 2016

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 8 - Capítulo 7 - O letrado - a vida passada a limpo

Capítulo 7 - O letrado: a vida passada a limpo

'O senhor saiba: em toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo...'

"Narrador-personagem, Riobaldo examina as linhas de seu destino duplo de jagunço-letrado." (77)

Ao morrer a mãe e ser levado para a casa do 'padrinho' Selorico Mendes é que Riobaldo entra em contato com a "mitologia do cangaço": 'Altas artes de jagunços - isso ele amava constante - histórias'. (78)

E é o padrinho que o prepara para um destino duplo: armas e letras. Faz com que ele aprenda a atirar, a manejar porrete e faca. E também tem a ideia de mandar Riobaldo à escola. Aqui, as duas ordens se entrelaçam pois o padrinho quer que ele aprenda a ler para, entre outras coisas, inteirar-se da prova documental de que Selorico Mendes tinha relação com o famoso jagunço Neco: 'E meu padrinho me mostrou um papel, com escrita de Neco - era recibo de seis ancorotes com pólvora (...) e a assinatura rezava assim: Manoel Tavares de Sá. Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola' (78)

Riobaldo se dá bem na escola, melhor até do que na vida prática (com exceção das artes guerreiras, onde também brilha), demonstrando vocação para professor e se tornando assistente de Mestre Lucas. (78-9)

Se fora o interesse do 'padrinho' no cangaço que levara Riobaldo a ter contato com as letras, agora o destino se inverte: "é por ser um letrado que Riobaldo entra para o cangaço", indo ser professor de Zé Bebelo depois de fugir da casa de Selorico Mendes. Zé Bebelo irá chamá-lo para sempre de professor, embora rapidamente aprenda tudo que Riobaldo tem a lhe ensinar. (79)

Mais uma volta do destino: na qualidade de secretário de Zé Bebelo, Riobaldo não participa mas assiste a uma batalha e foge para "não se ajagunçar": 'Em certo ponto do caminho, eu resolvi melhor minha vida. Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade'. (79)

Em mais uma ironia trágica, ao fugir é que vai acabar reencontrando o Menino e acabando por entrar no bando de Joca Ramiro, tornando-se de vez jagunço, embora nunca deixando de ser letrado. (79)

"Se um texto foi ponto de partida para a educação formal de Riobaldo, a qual por sua vez foi responsável por sua entrada no mundo dos jagunços, outro texto vai ser decisivo para sua promoção de jagunço a chefe. (...) Devido à sua condição privilegiada de letrado, ele é o único homem do bando a conhecer o conteúdo das cartas que Zé Bebelo envia às autoridades, quando cercado; e Riobaldo suspeita de um conluio de Zé Bebelo" (79)

É somente neste contexto de dúvida em relação à lealdade de Zé Bebelo que surge nele a ideia de liderar o bando. (80)

"Fica sempre, em Riobaldo, a nostalgia das letras. Em suas andanças de jagunço, encontra vagar e interesse para ler um livro. 'Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuía um livro, capeado em couro, que se chamava Senclér das Ilhas e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance, porque ante eu só tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinárias.' (80)

"Riobaldo exibe seus títulos de letrado logo no início da narração, para qualificar-se perante seu ouvinte: 'Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive Mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia - que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado. Na fazenda O Limãozinho, de um meu amigo Vito Soziano, se assina desse almanaque grosso, de logogrifos e charadas e outras divididas matérias, todo ano vem. Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos - missionário esperto engambelando os índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto muito de moral.' (80)

"É cônscio da bifurcação de seu destino entre as armas e as letras: 'Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido'. Com extraordinária acuidade, Riobaldo localiza o destino letrado possível para um habitante do sertão, que é o do padre e não aquele em que pensaria uma mente urbana - escritor, cientista, poeta etc. Ao mesmo tempo, esgota os dois caminhos possíveis e as duas metas históricas que têm sido as saídas da plebe rural brasileira: a religião e a violência." (81)

O primeiro encontro de Riobaldo com um bando de jagunços, ainda na fazenda do padrinho, é decisivo em vários sentidos. Primeiro pelo encontro com os "seres mitológicos das fabulações do seu pai". Mas também pela descoberta da poesia a partir da toada cantada por Siruiz, um dos membros do bando. Isto "revela a Riobaldo que é possível criar com palavras": 'O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha ideia. Aire, me adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela qualidade. (...) Pois foi que eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas.' (81)

"Em outras ocasiões, Riobaldo eventualmente pratica a poesia, sempre seguindo o modelo da canção de Siruiz." (81)
"Aqueles primeiros versos de sua autoria, ele mesmo os esqueceu; mas, mais tarde, faz outros - e cita-os na narração - com o propósito de dar continuidade à canção de Siruiz. (...) Muito depois, Riobaldo, já chefe de bando, compõe ainda mais outros versos, que o bando todo canta. Às voltas com seus problemas e preocupações, já pactário, recorre naturalmente à criação literária para expressar-se: 'Mas eu tinha conseguido encher em mim causas enormes. Dispor do rôr daquilo eu não conciliava, conforme perseguia, custoso, vermelho meu. Somente quis, nem podia dizer aos outros o que queria, somente então uns versos dei, que se puxaram, os meus, seguintes.'" (82)

"A tarefa presente de Riobaldo, narrador e personagem, é transformar seu passado em texto. Enquanto o passado era presente se fazendo, no caos do cotidiano, Riobaldo não teve tempo para refletir o suficiente - embora fosse um indagador - e compreender. 'De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gosto, de especular ideia.' " (82)

"O narrador, ao mesmo tempo que expõe seus títulos, jacta-se também de sua boa cabeça, outro componente da condição de letrado. 'Eu quase nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!' (82)

E também afirma ter outro instrumento do letrado, a memória: 'Assim é que digo: eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice.' E mais: 'Mire veja: sabe por que é (82)
que eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa memória. A luzinha dos santos arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu, lembro de tudo' (83)

"Justifica-se perante o interlocutor por ter pensado menos quando era jovem e por pensar demais, agora que é velho. 'Também, eu desse de pensar em vago em tanto, perdia minha mão-de-homem para o manejo quente, no meio de todos. Mas, hoje, que raciocinei, e penso a eito, nem por isso não dou por baixa minha competência, num fogo-e-ferro'  Na juventude, não era dono de seu destino nem compreendia seu viver disponível: 'Por que era eu que estava procedendo à toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho'. Mas, hoje, valoriza o exercício da inteligência. 'Por tudo, réis-coado, fico pensando. Gosto. Melhor, para a ideia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo, dentro dele.' (83)

"Aprecia o intelocutor inteligente e preparado, que está à altura daquilo que ele conta. 'Se vê que o senhor sabe muito, em ideia firme, além de ter carta de doutor. (...) Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir.' (...) Alguns de seus repetidos elogios à capacitação do interlocutor têm muito de manha rústica, que exagera para por no seu devido lugar, para reduzir a proporções mais razoáveis. Por isso, seus louvores se entremeiam de reivindicações quanto à posse e intransmissibilidade da experiência; a experiência é dele, não do interlocutor. Sobre o funesto episódio da travessia frustrada do Liso do Sussuarão, diz: 'Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido.' Sobre os dias passados nas Veredas Mortas, a preparar-se para o pacto (83)
com o Diabo, diz: 'E o senhor não esteve lá. O senhor não escutou em cada anoitecer, a lugúgem do canto da mãe-da-lua. O senhor não pode estabelecer em sua ideia a minha tristeza quinhoã'" (84)

"Essas observações todas relacionam-se com a transformação da vida - caótica, desnorteante, desconexa - em texto compreensível. (...) Por que é que Riobaldo quer transformar sua vida em texto? Para poder compreendê-la, porque 'a vida não é entendível'." (84)

"O auxílio do interlocutor é seguidamente solicitado. Às vezes, ele tem o papel de um alter ego, de um desconhecido neutro e não envolvido nas coisas, a quem se podem dizer os maiores segredos. 'Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas, Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo, mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo.'" (84) [M.A. Isso, de certa forma, lembra o mecanismo da psicanálise]

"O interlocutor, parceiro equipado para a construção de um texto decifrável, que se decifra à medida que se constrói, é companheiro na tarefa: 'Eu sei que isto que eu estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for de jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que (84)
empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.' (85) [M.A. Não concordo com Walnice Nogueira Galvão na interpretação deste trecho. Aqui há uma ironia fortíssima, pois de que vale a 'instrução' para 'decifrar as coisas que são importantes' ?]

"Riobaldo acentua que está narrando com propósito: 'Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.' E o propósito é o entendimento da experiência através do texto construído como cometimento de ambos: 'Ao que? Não me dê, dês. Mais hoje, mais amanhã, quer ver que o senhor põe uma resposta. Assim, o senhor já me compraz. Agora, pelo jeito de ficar calado alto, eu vejo que o senhor me divulga.'" (85) [M.A., Novamente, discordo, acho que há aqui uma ironia latente: o silêncio do intelocutor muito bem pode ser fruto de alguém que não sabe o que dizer]

"O concurso de outra cabeça, de outra experiência de vida, e sobretudo de uma experiência de letrado maior, é aquilo com que conta Riobaldo para a elaboração de um texto finalmente significante: 'Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas o principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode saber que o senhor saiba'" (85) [M.A. Aqui Riobaldo parece estar distinguindo dois níveis: o primeiro, da experiência vivida, só ele pode alcançar; mas quando a experiência é narrada, abre-se a porta a interpretações acerca do significado da mesma; é aqui que outra pessoa poderia contribuir]

"Significante, isto é, que ganhe significação para ele mesmo, para que ele compreenda, para que ele adquira confiança em seus próprios juízos sobre si mesmo. É praticamente um julgamento que ele pretende, talvez mesmo uma absolvição. (...) Embora não seja talvez essa sua intenção primeira ao iniciar a narração, passa a ser, quando ela já vai bem adiantada; e passa a ser, declaradamente: 'Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir conselho.'" (85) [M.A. Aqui, ele confessa que mesmo a narração do vivido é uma seleção, já comporta uma interpretação na forma de uma questão: 'armar o ponto de um fato']

"E quando está encerrando a narração, menciona novamente essa subordinação ao (85)
interlocutor: 'No que eu narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade'" (86) [M.A. O mais importante é que a verdade não está no conteúdo factual da narrativa e sim no seu significado. Discordo que o doutor seja considerado um privilegiado para alcançar a verdade, ele na verdade convida o leitor a buscar a sua própria interpretação.]

"O narrar - fazer um texto com o concurso do interlocutor letrado - é objeto de reflexões frequentes por parte de Riobaldo. Tem-se por bom narrador, capaz de avaliar a exata importância de cada passo que relata. Em seu critério, uma boa narração deve dar conta do peso diverso que cada passagem da vida tem; assim, o que importa narrar com pormenor e detidamente é aquilo que foi relevante como experiência. Pouco importa a extensão no tempo ou a multiplicação das peripécias; nem mesmo a linearidade de sequência deve ser respeitada. Em suma: o que determina o texto é a vida, mas o que explica a vida é o texto. 'Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.'" (86)

"Outra coisa é a dificuldade de avaliar o passado e a facilidade de mentir, involuntariamente embora, no sopesar de cada acidente. 'Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas, de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.' " (86)

"Compare-se o leitmotiv da narração - 'Viver é muito perigoso' - com este 'Contar é muito, muito dificultoso': frases de sintaxe paralela, este paralelismo ilumina-as mutuamente. O existir e o narrar dão-se ambos como empresas árduas, que a cada instante podem assumir as formas do falso, desencaminhando a prática do sujeito." (86)

"Ainda, o narrar legítimo, que é o que apanha apenas o essencial dos acontecimentos, que quer dar coerência à vida, demanda esforço custoso: 'O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enviar a ideia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é (86)
fácil. Fé que não é.'" (87)

"Mas o narrador se dedica com tenacidade a esse esforço e faz o possível para atingir o seu objetivo: 'Porque não narrei nada à-toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo.'" (87)

"Outras vezes, procura sugerir com palavras aquilo que está para além das palavras, reconhecendo suas dificuldades. 'Os ruins dias, o castigo do tempo todo ficado, em que falhamos na Coruja, conto malmente. A qualquer narração dessas depõe em falso, porque o extenso sofrido se escapole da memória.'" (87)

"Riobaldo mostra com insistência a faceirice do bom narrador, que, não contente com bem narrar, também teoriza a respeito: 'Sobre assim, aí corria no meio dos nossos um conchavo de animação, fato que ao senhor retardei: devido que mesmo um contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez.' Ou: 'As partes, que se deram ou não se deram, ali na Barbaranha, eu aplico, não por vêzo meu de dar delongas e empalhar o tempo maior do senhor como meu ouvinte. Mas só porque o compadre meu Quelemém deduziu que os fatos daquela era faziam significado de muita importância em minha vida verdadeira (...). Aí, narro, o senhor me releve e me suponha'. Ou ainda: ' Digo franco: feio o acontecido, feio o narrado. Sei. Por via disso mesmo resumo; não gloso. No fim o senhor me completa.'" (87)

"E sua destreza maior, que é negacear a respeito do sexo de Diadorim, nomeando-o sempre como homem ao mesmo tempo em que semeia incontáveis pistas de sua feminilidade: a revelação para o interlocutor, e para o leitor igualmente, só eclode no final da narração, quando o narrador assim o deseja, para isso chamando a atenção do seu ouvinte" (...) (87)
'Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita' (88)

"São várias também as referências de passagem à narração que se está processando. Ora aparecem na forma de um comentário que resume, a modo de escusas, uma série de observações filosóficas de Riobaldo, marginália ao anedótico: 'Se estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este'; ou ainda: 'Com o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto'; e ainda: 'Desculpe me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo'." (88)

"Ora tais referências assumem o papel de transição para outro episódio: 'Ou conto mal? Reconto'. Por vezes, o narrador dá-lhes a função de permitir um ligeiro retrocesso: 'Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. Pois ia me esquecendo: o Vupes!' Também, para se justificar e atribuir a dificuldade à matéria, diz: 'Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de por denúncia'. Outras vezes, utiliza-se destas reflexões para chamar a atenção do interlocutor: 'Eu conto. O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois'; ou: 'O senhor não é bom entendedor? Conto'. Tampouco se furta a assinalar que não narra levianamente; assim, após ter contado alguns casos seus com mulheres, observa: 'Mas o senhor releve eu estar glosando assim a seco essas coisas de se calar no preceito devido. Agora: tudo o que eu conto, é porque acho sério preciso'." (88)

"E é assim, por essas vias todas, que o narrar vai-se também tornando um dos objetos que compõem a matéria da narração." (88)

"Como bom letrado, ainda que letrado frustrado, Riobaldo erige o texto em espaço privilegiado, lugar da verdade, da clareza, da coerência, de tudo aquilo a que a razão aspira enquanto se debate na desordem do existir." (88)

"Não é gratuitamente que faz esta afirmação: 'Em desde aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça (...)'. A vida, portanto, é como se fosse um mau texto: um bom texto deve ter pés e cabeça." (88)

"O maior louvor que pode fazer a seu ouvinte é atribuir-lhe a qualidade de ser 'fiel como papel', qualidade de pessoa e de caráter, e não elogio a seu preparo intelectual: 'Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda'."  (89)

"Que o viver é caótico, confuso, desordenado, o narrador menciona constantemente. Para impor uma ordenação, não à vida, porque esta já passou, mas ao que dela restou da memória, é preciso refletir sobre ela e torná-la texto. 'A vida não demora em nada', é o que diz Riobaldo. 'Mesmo o que eu estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido.' (89)

"O texto é aferidor da vida, e não o contrário. De seu encontro definitivo com Diadorim, muitos anos após o encontro com o Menino, diz o narrador: 'Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê'. É do texto que promanam até mesmo diretrizes para a ação; pois foi melhor que dois inimigos seus tivessem logo morrido em batalha, já que, se vivessem, estariam aprontando traições e tocaias. 'Nas estórias, nos livros, não é desse jeito? A ver, em surpresas constantes, e peripécias, para se contar, é capaz que ficasse muito e mais engraçado. Mas, qual, quando é a gente que está vivendo, no costumeiro real, esses floreados não servem: o melhor mesmo, completo, é o inimigo traiçoeiro terminar logo, bem alvejado, antes que alguma tramóia perfaça!'. Ao contar a arrancada do bando de Zé Bebelo, cerca de mil combatentes, coisa impressionante de se ver, diz: 'o senhor mesmo nunca viu coisa assim, só em romance descrito'." (89)

"É também o texto que serve de argumento para salvar a vida de Zé Bebelo, no julgamento. Naturalmente, é Riobaldo quem primeiro se lembra de lançar mão desse argumento, dentre tantos que estão sendo postos em jogo. - '... A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela todo mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas...'. O argumento é logo retomado e desenvolvido por Sô Candelário, igualmente advogando em favor de Zé Bebelo: - '... Seja a 
fama (89)
de glória... Todo mundo vai falar nisso, por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas partes e lugares. Hão de botar verso em feira, assunto de sair até divulgado em jornal de cidade...'" (90)

"Mais para o fim da narração, quando o texto pregresso já está de grande extensão, Riobaldo passa a aludir francamente ao fato de ambos - narrador e interlocutor - estarem fazendo um registro escrito e a medir a importância do que está relatando em função do número de páginas que devem ser redigidas. (...) Assim, diz a certa altura: 'A vida é um vago variado. O senhor escreva no caderno: sete páginas...' A última batalha, na qual Diadorim morre, vale este conselho: 'Campos do Tamanduá-tão - o senhor aí escreva: vinte páginas...' Até recomenda que se faça um mapa do Tamanduá-tão, descrevendo como seria. (90)

"Ao contar o arremate da batalha, quando Riobaldo trespassa, ao ver sem poder intervir o duelo a faca entre Diadorim e Hermógenes, novamente é tomado pelo sentimento da impenetrabilidade da vida e de sua natureza distinta do texto: 'Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor enche uma caderneta...'" (90)

"O fetiche do texto se mostra em sua maior nitidez quando o narrador se detém na descrição de Diadorim (90)
morto: 'Não escrevo, não falo! - para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo!' Então o texto assume o nível do real e empurra o real para fora, de modo tal que passa a ser real aquilo que o texto instaura. Mas o narrador fala, e o interlocutor escreve, e assim fica sendo." (91)

"E é numa sequência verbal que se encontra apurado, concentrado, resumido, o cerne mesmo da experiência de Riobaldo-jagunço. '(...) o diabo, na rua, no meio do redemunho... Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas palavras, que o senhor nunca deve de renovar.' Ele mesmo já tinha construído para si esse pequeno texto-súmula, que escapara de seus lábios logo no início da narração seguido pela recusa de explicá-lo e que só vai encontrar significado pleno no desfecho da história." (91)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 7 - Capítulo 6 - A linguagem e a fala

Capítulo 6: A linguagem e a fala

'- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.'

"A situação de narrar que Guimarães Rosa propõe tira sua verossimilhança de tantas outras a que estamos acostumados: o depoimento de um velho jagunço, anotado pelo entrevistador, antes, e hoje gravado em fita; aparece constantemente em livros, jornais e revistas." (69)

"O travessão que precede a primeira palavra do romance, e que só se fecha no ponto final da última página, instaura o monólogo como um dos lados de um (69)
diálogo; mas o diálogo que se contém nele é suposto. Nenhuma só vez o monólogo é interrompido para dar lugar ao interlocutor. (...) Colocam o intelocutor dentro do monólogo: as alusões diretas que o narrador faz a ele - 'Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe?'; as 'respostas' que têm a pergunta sugerida pela forma da frase - 'Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores.'; as perguntas que o narrador faz a seu ouvinte, sugerindo a ocorrência de uma resposta pela continuação da frase - 'Por que o Governo não cuida? Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio'. Assim vai se compondo a figura de um intelocutor que é hábil inquiridor, simpatizante e letrado." (70)

"É o monólogo, contendo um diálogo pela alusão a um interlocutor, que determina a opção pela fala. As frases interrogativas e exclamativas, as interjeições, os expletivos, as frases truncadas e entrecortadas, definem o discurso que se dá como fala. A fala é também o grande unificador linguístico; cancela a multiplicação de recursos narrativos - variação de pessoa do narrador, cartas, diálogos, outros monólogos; até mesmo as personagens do enredo falam pela boca de Riobaldo. É o fluxo da fala que impõe um ritmo próprio às sequências verbais" (70)

"Mas é preciso lembrar que se trata de 'fala' e não de fala. A magnífica oralidade do discurso é uma oralidade ficta, criada a partir de modelos orais mediante a palavra escrita. Por isso mesmo, é impossível ler o 'depoimento' de Riobaldo da maneira como se lê o depoimento de um velho jagunço. Já foi necessário a Guimarães Rosa fazer de seu narrador-personagem um letrado, para fundamentar, no nível da verossimilhança, uma experiência mental (70)
tão rica e que tão bem se expressa verbalmente. Afinal, o autor do depoimento é Guimarães Rosa. O 'depoimento' transcende inteiramente a situação concreta do narrador-personagem e mesmo a possibilidade de tal discurso partir dele." (71)

"Por um lado, subjaz a esse discurso um parentesco muito grande com o falar sertanejo (ou falares sertanejos); o leitor com ele familiarizado nota-o imediatamente." (71)

"Acontece, todavia, que Guimarães Rosa explora ao máximo as possibilidades do modelo, mediante este salto definitivo que representa a escolha do narrador-personagem. Tudo, então, se torna convincente como linguagem. Fica eliminado o contraste canhestro, tão praticado pela prosa regionalista, entre o diálogo que reproduz o falar e o não-diálogo que reproduz a prática letrada do autor." (71)

"A isso, Guimarães Rosa escapa colocando a totalidade do romance num só fluxo de fala." (72)

"Mas, por outro lado, o discurso de Grande Sertão: Veredas escapa também dos limites do falar sertanejo. É bem verdade que existe em seu vocabulário um farto aproveitamento de regionalismos, e não só sertanejos;" Palavras que parecem estranhas e inventadas ('vuvú vavavá de conversa ruim') estão consignadas em dicionários: (72)
vuvu é um regionalismo popular de Minas Gerais significando briga, conflito, confusão e vavavá é brasileirismo para barulho de vozes, algazarra, agitação, alvoroço, atropelo, azáfama. (73)

Também aproveita extensamente arcaísmos, característicos da língua brasileira do sertão, que às vezes parecem inventados: 'que joliz havia de ser era se meter um balaçõ no baixo da testa do Hermógenes', em que joliz parece uma combinação do francês joli + feliz mas é um arcaísmo registrado em dicionário como alegre, amável. (73)

"Mas não é menos verdade que há também palavras inventadas pelo autor, embora muito menos do que supõe o leitor desavisado, e estrangeirismos da autoria dele, tanto de línguas vivas como de línguas mortas." (73) P.ex. esmarte.

Usa da liberdade proporcionada pela língua de alterar a afixação e de fazer novas derivações, o que ocorre em outros textos e também na vida real, p.ex. "No cearense Dona Guidinha do Poço ocorrem sem estranheza talentuda, musculenta, folhiço, falaço, bondadosa, tristor, acelêro, etc." (73)

"Tudo isso aponta para um escritor que ama as palavras, que é leitor de dicionários, e que se move num universo linguístico - contemporâneo e passado - muito mais amplo do que aquele a que estamos habituados." (73)

"Guimarães Rosa tem portanto, um pé na linguagem do sertão e o outro pé na linguagem do mundo. Se, de um lado, explora as possibilidades do falar sertanejo, de outro explora campos linguísticos eruditos que nada têm a ver com o sertão. Se, de um lado, a matéria que põe em jogo é a matéria do sertão, de outro lado extrai as consequências máximas do imaginário do sertão; assim, coisa inédita na literatura brasileira, transforma seu romance numa demanda; e permite que as andanças dos jagunços ganhem visos de proezas de cavaleiros andantes, de luta do bem contra o mal. Se, de um lado, seu romance é o mais profundo e mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira, por outro lado também é a mais profunda e mais completa idealização da mesma plebe. Se, por um lado, o falar sertanejo permite e justifica que o livro se arme como uma discussão metafísica sobre Deus e o Diabo, aceita-se esta discussão porque esses são conceitos que estão ao alcance do narrador-personagem para efetuar a tentativa de demarcar os limites entre a liberdade humana e a necessidade imposta pelo sistema de dominação. Mas, por outro lado, o contingente erudito da linguagem usada pelo escritor permite e justifica que Deus e o Diabo sejam, ao fim e ao cabo, concepções muito mais requintadas e que derivam tanto de Heráclito como do budismo." (74)

"A inegável sedução da linguagem carrega nela, a um só tempo, o sentir empático do escritor face ao homem do sertão e seu viver, e uma vasta experiência na tradição letrada que o escritor não põe em dúvida. Seguramente, o pé esquerdo de Guimarães Rosa está solidamente fincado no sertão; mas não menos seguramente, seu pé direito está alhures." (74)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 6 - Capítulo 5 - A matéria - matéria e matéria imaginária

Capítulo 5: A matéria: matéria e matéria imaginada

'Quando conheceu Joca Ramiro, então achou outra esperança maior: para ele, Joca Ramiro era único homem, par-de-frança, capaz de tomar conta deste sertão nosso, mandando por lei, de sobregoverno. Fato que Joca Ramiro também igualmente saía por justiça e alta política, mas só em favor de amigos perseguidos; e sempre conservava seus bons haveres.' (GSV)

"O 'par-de-frança' ao lado do 'sertão nosso', na mesma frase, mostram o livre trânsito entre a matéria e a matéria imaginária neste romance." (51)

"A presença de elementos do imaginário da cavalaria no Grande Sertão: Veredas, já assinalada e examinada nos ensaios pioneiros de Cavalcânti Proença e Antonio Candido, não é apenas algo posposto com o objetivo de dignificar a matéria e operar uma contribuição a mais para a mitologia do cangaço. A preocupação de entender a razão de ser dessa presença levou-me à identificação de uma verdadeira 'célula ideológica', que passo a descrever." (52)

"Como passo inicial, importa distinguir dois níveis. O primeiro é o da tradição letrada, que, em estudos, crônica, história e ficção, pratica a analogia entre jagunço e cavaleiro andante, latifúndio e feudo, coronel e senhor feudal, sertão e mundo medieval. Essa é uma velha tradição em nossas letras, que força uma semelhança nobilitadora e minimiza a necessidade de estudar o fenômeno naquilo que tem de específico." (52)

P.ex. Euclides da Cunha, Pedro Calmon, Gustavo Barroso, Wilson Lins, Luís da Câmara Cascudo (52-56)
e também ficcionistas como Franklin Távora, que chama o Cabeleira de 'Cid ou Robin Hood pernambucano', Afonso Arinos (Os Jagunços) (56)
Manoel Oliveira Paiva (Dona Guidinha do Poço) (57)

"Estes poucos exemplos literários, todos ainda do século XIX e do início das manifestações regionalistas, que culminarão no romance de 30, servem para dar uma ideia da questão (...) esta representação atravessa de ponta a ponta a ficção regionalista. A obra de José Lins do Rego e de Jorge Amado está inçada de casos semelhantes. Quanto a Graciliano Ramos, lembro apenas que Vidas Secas, em sua espantosa desideologização da linguagem e em sua pesquisa da posição ontológica do sertanejo pobre no mundo contemporâneo, nem uma só vez incorre nisso." (57)

"Outro nível, bem diverso, é o da tradição popular sertaneja. Não que este nível seja inteiramente desligado do outro - afinal, os valores dominantes são os valores da classe dominante -; mas é compreensível e aceitável por ser o único modelo histórico de que dispõe a plebe rural, que não tem história, para mais ou menos objetivar o seu destino." (57)

"O acontecido ontem e aqui ombreia com o acontecido em eras remotas e bem longe. Na tradição oral dos causos e (57)
das cantigas, bem como nos romances de cordel, é a mente letrada que vai executar as operações da razão, definindo, separando, constituindo tipos, no seio de um conjunto onde o cavaleiro andante, o cangaceiro, a donzela guerreira, a donzela sábia, figuras da história do Brasil, o animal, o Diabo, são todos personagens de um só universo." (58)

"o texto que mais se alastrou pelo sertão e mais vida e popularidade teve, foi a História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França - Seguida da de Bernardo del Carpio que Venceu em Batalha aos Doze Pares de França. (...) Um exemplar de tal livro, que nada tem de raro ainda hoje, mostra, no descuido de sua edição, na qual não se pode ter confiança, na modernização da ortografia, na falta de informações (58)
bibliográficas que se esperariam encontrar no volume, na vulgaridade da capa, um destino que transcende o círculo dos letrados." (59)

"Trata-se de uma novela de cavalaria, em prosa, a que Luís da Cãmara Cascudo assim se refere: 'era o grande livro de História para as populações do interior'." (59)

Seg. Cascudo haveria um texto francês (Conquêtes du grand Charlemagne) de 1485, traduzido em Espanha em 1525, onde tivera grande êxito bem como em Portugal. A forma que chega no Brasil, constando de duas partes, veio a luz em Portugal em 1745 (a primeira parte foi publicada antes). (59)

"Esse livro tem sido a fonte inexaurível de inspiração para os cantadores sertanejos. Contando com um número imenso de episódios em seu vultoso volume, deu também origem a uma imensa cópia de cantigas em verso, na arcaizante forma tradicional. Foi esse livro, - os episódios avulsos narrados oralmente e assim passando de geração a geração, as cantigas que dele se originaram, e mais tarde os romances de cordel impressos a partir delas - que alimentou, formou e tornou-se parte do imaginário do sertão." (59)

"Hugo de Carvalho Ramos [no seu Tropas e Boiadas, de 1917] generaliza a presença do livro, falando das 'aventuras dos doze pares de França, livro tido em grande estima no sertão, cuja leitura, nos serões solarengos das fazendas do interior, era feita em torno do lampião de querosene à família atenta'" (60)

Gustavo Barroso diz que quando o dono leu o livro sobre Carlos Magno o cachorro se chama Ferrabraz ou Roldão e em nota de rodapé: 'É um livro de fancaria que todo o sertanejo conhece por ter lido ou de referências.' (60)

Na Guerra do Contestado "o grupo de elite dirigente dos insurretos intitulava-se os pares-de-França; e, em sua compreensão ao pé da letra da velha expressão medieval, eles eram vinte e quatro, e não doze." (61)

"Por sua vez, o Grande Sertão: Veredas, encampando o sertão, encampa também o imaginário do sertão. Nada mais verossímil que um jagunço, ademais um jagunço parcialmente letrado, narrando sua vida, a ela se refira em termos de novela de cavalaria. Afinal, esse é o imaginário de seu convívio." (61)

"O mundo idealizado da cavalaria faz parte indissolúvel da matéria tratada no romance. Não entra de fora, mas por dentro, por via da experiência do narrador-personagem. Tanto assim é que Riobaldo só se utiliza, ao longo do livro todo, de duas personagens literárias para fazer comparações, e ambas do mesmo texto. ele conta que leu Senclér das Ilhas e nunca menciona a História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França; mas é deste último, e relacionados entre si, que saem o Almirante Balão com que compara Ricardão e Gui de Borgonha, com quem se compara. A matéria imaginária é aquela que está entranhada na própria matéria, contida pelos limites desta." (61)

"Por outro lado, é preciso lembrar também que aquilo que o senso comum nos insinua quando ouvimos falar em cavaleiro andante é apenas uma visão idealizada e moderna; imagem que reúne e acentua alguns traços éticos - pureza, honra, lealdade, fidelidade, decência etc. - está bem longe, já não direi da sua realidade histórica, mas dos próprios textos da novela de cavalaria. E nisto, (61)
em sua terrível crueza e impiedade, a novela de cavalaria está bem mais próxima do Grande Sertão: Veredas do que o leitor moderno poderia supor." (62)

"Quanto à História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, nessa mesma versão que corre o sertão, baste um exemplo. A Princesa Floripes, personagem feminina central da primeira parte, amada de Gui de Borgonha e filha do inimigo Almirante Balão, instiga Carlos Magno a (62)
matar o pai dela, feito prisioneiro, porque este se recusa à conversão; o que é de fato feito em seguida." (63)

"Grande Sertão: Veredas não é menos cru, com suas traições, torturas, estupros, assassínios, sadismos; mas também não é menos idealizado, em suas lealdades, amores, sentimentos de honra e outros belos sentimentos." (63)

Guimarães evita datar o enredo, ao falar, por exemplo, que Diadorim nascera 'Em um 11 de setembro da era de 1800 e tantos...', mas pelo menos permite datar aproximadamente o presente da narração: "Em meio às reminiscências avulsas e misturadas, o narrador diz: 'Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos os animais de sela' (1924-7)" (63)

"Os limites máximos e mínimos, em toda a sua deliberada imprecisão, demarcam contudo o contorno da República Velha." (63)
Inclusive porque se fala em capital do Estado e não da Província e Zé Bebelo fechava suas cartas com 'Ordem e Progresso, viva a Paz e a Constituição da Lei!'. (64)

"Mas, muito mais importante que as datas, jamais claras, e mérito de grande escritor, é a encarnação em personagens de romance do próprio processo político de consolidação nacional levado a cabo em sua última parte pela República Velha, e de que a ditadura Vargas marca o termo. Zé Bebelo desempenha o papel histórico do princípio centralizador e republicano, em oposição ao princípio federativo e localista representado pelos coronéis - Joca Ramiro e seus pares - com seus bandos privados." (64)

"Zé Bebelo é o homem da Ordem - 'Sei seja de se anuir que sempre haja vergonheira de jagunços, a sobre-corja? Deixa, que, daqui a uns meses, neste nosso Norte não se vai ver mais um qualquer chefe encomendar para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, só para tudo destruírem, do civilizado e do legal!' - e do Progresso: 'Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas.'" (64)

"Embora pense em seus interesses particulares e tenha um olho no congresso, fala sempre nos interesses da nação: 'Agora, temos de render este serviço à pátria - tudo é nacional!' E é a única personagem deste livro capaz de raciocinar não em termos de tradição e alianças privadas de dominação, mas em termos de república e de canais democráticos." (64)

"Os atributos pessoais de Zé Bebelo representam a modernidade, no contexto histórico de República Velha do romance; são eles a inteligência, o desejo de instruir-se, a visão nacional. Mas, também ele ambíguo, comporta forte contingente de atributos pessoais tradicionais: a valentia em primeiro lugar, a sede de poder pessoal, a (64)
utilização dos recursos habituais para cumprir seus intentos - usa jagunços para acabar com os jagunços. Rende-se afinal à lei do sertão, assumindo a chefia do próprio bando que combatera; e isso, para levar avante uma missão de vingança particular sem qualquer 'propósito' nacional. Perdeu a parada histórica; só lhe restava ou morrer pelas armas - à maneira tradicional - ou degradar-se em negociante, que é o que lhe acontece; ao menos, este fim implica uma etapa histórica mais avançada." (65)

"É por tudo isso que Zé Bebelo, figura tão marcante, tem muito mais tiques pessoais e traços distintivos do que os demais chefes que aparecem no romance. Ele pode menos resvalar para o plano mítico que os demais, sempre apresentados de maneira nebulosa e grandiosa. Não lhe é possível provocar a reverência do leitor - nem do narrador - com seus 'Maximé!', seus xingamentos, seu desejo de ser deputado, seu falatório incessante, seu apito. É figura sem a dignidade cavaleiresca e mítica de Medeiro Vaz e Joca Ramiro, por exemplo; por isso mesmo, tão mais humana e simpática." (65)

"Não é por coincidência que Zé Bebelo é aliado do governo, armado por ele, financiado por ele: é o princípio centralizador, respaldado pelo centro. Os outros chefes, Joca Ramiro inclusive, fazem parte da habitual aliança privada de dominação, eventualmente - e é este o caso do enredo deste romance - em oposição ao governo central. Todos eles são poderosos fazendeiros; e sua motivação política e privada é várias vezes mencionada no texto." (65)

"O único que escapa, não às origens de classe, mas a essa motivação, é Medeiro Vaz, este sim saído diretamente do plano dos ideais para o plano do rigor histórico deste romance." Afinal, Medeiro Vaz abandona posses e riquezas, põe fogo na própria fazenda para perseguir o dever de implantar a justiça em um sertão onde havia banhos de sangue. (65)
Medeiro Vaz "entra na dimensão daquilo que, depurado pelos séculos e pelo desconhecimento, formando uma espécie de Idade de Ouro moral localizada no passado, associou-se progressivamente ao anseio por ideais éticos mais altos e mais abstratos, longe da esfera dos negócios. Medeiro Vaz vem a ser o único cavaleiro andante (versão moderna) deste romance, sem um deslize, sem uma motivação menor, nem o poder, nem o interesse privado, nem a política, nem a aliança de dominação." (66)

"Alguma vez terá uma personagem de ficção saído para impor a justiça, com verossimilhança e sem ridículo, a partir de Dom Quixote? O próprio narrador acentua, prudentemente, que dessa raça de homens não existem mais." (66)

"Voltando à História: as crônicas do sertão, e particularmente da região do São Francisco, fornecem muito material ao escritor. Seja nos resumos que faz, citando nomes e topônimos, das proezas sangrentas dos coronéis daquela zona; proezas que cobriram o Império e a República Velha, e das quais o enredo do livro é um desenvolvimento. Seja, e isto sim muito mais importante, no aproveitamento de padrões correntes de vária natureza, ligados à jagunçagem, mas que não são cópia e sim incorporação imposta pelo compromisso do romance com a realidade. No sertão como no Grande Sertão: Veredas, é costume chamar os chefiados pelo coletivo derivado do nome do chefe - os ramiros, os medeiro-vazes, os zé-bebelos" (...) "A renomação do jagunço é habitual" e por vezes é alusão à excelência do tiro (66)
como no caso de Lampeão (quando atirava tudo clareava em volta) e de Cerzidor, Tatarana e Urutu Branco, codinomes de Riobaldo. O Liso do Sussuarão é chamado de um raso, o que lembra o Raso da Catarina "deserto inóspito e temido na Bahia, tradicional esconderijo de jagunços, onde Lampeão passou muito tempo com seu bando a fugir da perseguição. Até mesmo o zurrar do jumento como sinal combinado de ordens em batalha está registrado nas crônicas. E mulheres-jagunço, houve-as; mas Diadorim lembra mais a donzela guerreira dos velhos romances portugueses. Finalmente, neste rol sumário, assinalo que a lenda do pacto com o Diabo e do corpo fechado é uma das mais caras tradições do sertão e se aplicou a todos os jagunços famosos." (67)

"O sertão comparece, neste romance, como o substrato que fundamenta a fabulação ficcional. A partir daí, e desenvolvendo os caminhos possíveis, o escritor chega até a vislumbrar, receoso, um rumo de transformação assustador. Em bela página, que suponho única no romance brasileiro, Guimarães Rosa constrói uma visão apocalíptica com as virtualidades da miséria. Partindo do contato com os catrumanos, estágio mais baixo de vida humana que os jagunços encontram, mesmo num meio onde predominam os 'mínimos vitais', Riobaldo começa a refletir sobre o ponto a que poderia chegar o miserável se a ordem das coisas fosse rompida. Diz então: 'De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo!' Intui que a miséria excessiva está aquém de qualquer possibilidade de convivência, de qualquer padrão moral, de qualquer romantização: ela é feia, suja, perigosa. Sente a ânsia do miserável pela posse, pelo gozo imediato, mesmo ao preço da destruição total. E a partir daí desenrola sua visão, que lembra a das maltas assoladoras dos fatos franceses de 1789: 'E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mís e centos milhentos, vinham se desentocando o formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer (67)
usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar. Ah, e bebiam, seguro que bebiam s cachaças inteiras de Januária. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem casas. Era preciso de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundões para se esconderem - Deus me diga?' Este quadro fantasmagórico e tremendo mostra a plebe rural desencadeada, monstro coletivo que avança para tomar tudo o que lhe foi negado por séculos de miséria e opressão. O horror da visão leva o narrador a abstrair os conteúdos dela, para com eles construir uma alegoria negativa: 'Nem me diga o senhor que não - aí foi que eu pensei o inferno feio deste mundo: que nele não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade.' " (68)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 5 - Capítulo 4 - O inútil utilizado

Capítulo 4: O inútil utilizado

'Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota - quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Para ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final' (GSV)

"Livre, e por isso mesmo dependente. Sem ter nada de seu, e por isso mesmo servidor pessoal de quem tem. Inconsciente de seu destino, e por isso mesmo tendo seu destino totalmente determinado por outrem. Sem causas a defender, e por isso mesmo usado para defender causas (41)
alheias. Avulso e móvel, e por isso mesmo chefiado autoritariamente e fixado em sua posição de instrumento. Posto em disponibilidade pela organização econômica, que não necessita de sua força de trabalho, e por isso mesmo encontrando quem dele disponha, para outras tarefas que não as da produção. Tal é a condição dessa imensa massa de sujeitos disponíveis em suas 'existências avulsas', que estavam aí para serem usados, e que o foram, ao longo de toda a história brasileira." (42)

"esta prestação de serviços pode ir até o crime, que nada mais é do que uma das muitas obrigações devidas ao protetor" (42)

"As peculiaridades do povoamento - feito em unidades econômicas constituídas em propriedades rurais - resultaram na formação de pequenos núcleos, isolados uns dos outros, onde a autoridade suprema era o senhor." (...) "os objetivos defensivos pouco se distinguem dos ofensivos, pois questões de limites e aguadas entre os vizinhos levam a guerras prolongadas, depredações em fazendas alheias, represálias etc. (42) Os fazendeiros, por sua vez, faziam alianças, em geral baseadas no parentesco, com outros fazendeiros para defesa e/ou ataque. (42-3)

Quando havia uma aliança entre senhores, os jagunços ainda continuavam sendo liderados por seu chefe, não havia fusão e sim superposição das tropas, cada um obedecia ao seu capitão. "Cada chefe - fazendeiro e home de posses - entra com um contingente de homens dele, no que Riobaldo vê um arranjo semelhante a 'governo de um bando de bichos'  "(43)

"Cada fazendeiro com seus chefiados, em guerra privada: a unidade econômica mínima é também a unidade mínima do poder político no Brasil rural. Célula econômica com sua própria força armada, vai desembocar necessariamente na disputa do poder político. Na passagem da colônia para país independente, com a criação formal de um quadro de instituições para o exercício eleitoral-representativo do poder político, tais células entraram intactas nesse quadro. Não houve alteração do sistema de poder efetivo, houve apenas um ajustamento dele aos quadros formais então criados. Cada célula significa um dado número de votos; da aliança entre os senhores locais é que resulta, inflexivelmente, a eleição do candidato escolhido em combinação com os partidos, de quem eles são a expressão local." (44)

"O grupo armado, portanto, continua exercendo a mesma função, a de garantir pela força o poder pessoal, com uma ampliação agora: a intimidação do eleitorado e a baderna em dia de eleição. Os tumultos eleitorais, de que dão conta os historiadores, atravessam todo o Império e a República, alternando-se apenas com períodos de calmaria relativa quando a fraude e a corrupção (atas falsas, diplomas falsos, etc.) respondem melhor que a violência direta a uma nova restrição ou abertura no direito ao sufrágio." (45)

"Ao nível do município, o mecanismo de poder político-eleitoral era o seguinte: em cada município havia um agrupamento de senhores que encarnavam a 'situação' e outro agrupamento de senhores que constituía a oposição. Nada os distinguia, nem origem de classe nem ideologia: apenas eram aliados de partidos com nomes diferentes. Esse é o quadro que atravessa toda a história eleitoral do Império e da República Velha, pelo menos. Profundamente estático como estrutura, apresenta-se dotado de um dinamismo episódico extraordinário, já que se resolve em turbulência, assassínios, golpes de força, etc" (46)

Uma vez instalado no poder municipal, o grupo dominante só poderia ser retirado pela força ou por intervenção governamental (atuação do Poder Moderador no Império e das 'salvações' durante a República Velha), já que o domínio da máquina eleitoral tendia a perpetuá-lo. (46-7)

'Tudo política, e potentes chefias!': essa a matéria vertente que constitui a vida de Riobaldo, o jagunço. Membro de um grupo armado a serviço de senhores de oposição ao governo no momento, partilha a condição jagunça, potencial de força manipulada por outrem para o exercício do poder. Passível de ser utilizada para o trabalho como para a destruição, para manter a ordem como para ameaçá-la, para impor a lei como para transgredi-la, para vingar ofensas como para praticá-las, as razões que decidem de sua atuação num ou noutro sentido independem de sua escolha. O senhor é quem opta, o jagunço executa. Tudo o que se passa fora da imediatez das tarefas cotidianas, o traçado dos interesses, as linhas-mestras da história, está também fora do alcance de sua consciência. Às indagações de Riobaldo, Jõe Bexiguento responde com seu 'Uai, Nós vive...' ; porque: 'Duro homem jagunço, como ele no cerne era, a ideia dele era curta, não variava.' " (47)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 4 - Capítulo 3 - A plebe rural

Capítulo 3: A plebe rural

'Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas.' (GSV) (35)

"A massa da população do meio rural brasileiro congrega, ao longo de nossa história, todos aqueles que não são nem senhores nem escravos." É uma "imensa massa humana excluída do processo produtivo principal, e que vive como pode, aplicada a atividades marginais e esporádicas." (36)

"Seu grande contingente, sua desocupação e disponibilidade foram preocupações constantes para os administradores da colônia e, posteriormente, para os dirigentes do Império e da República, fonte que era de turbulência e desordem, risco para a ordem pública." (36)

"No meio rural, esses desocupados tornam-se geralmente agregados e moradores, isto é, dependentes do (36)
fazendeiro." Estes moradores ou agregados constituem 80% da população do interior. (37)

"A liberdade absoluta desses homens, que deriva da falta de tudo - de propriedade, de tradição, raízes, qualificação profissional, instrumentos de trabalho, direitos e deveres -, tem como corolário a dependência também absoluta. O único meio de sobreviver é colocar-se sob a 'proteção' de um poderoso." Riobaldo e sua mãe havia sido protegidos pela família Jidião Guedes, por exemplo. (37)

"Essa terra em excesso não é, todavia, livre: ela pertence sempre a um proprietário, que tem o direito de permitir que alguém nela more e pratique uma pequena lavoura de subsistência." (...) "o morar 'de favor' em terra alheia traz implícito o compromisso pessoal com o proprietário da terra, haja ou não contrato de trabalho" (37)

"Tais mínimos [vitais e sociais] se expressam em trabalho rudimentar e esporádico, alimentação insuficiente, frouxa trama da organização social, produção cultural quase inexistente. Decorre daí a típica mobilidade do homem pobre do meio rural: os laços que o prendem ao lugar são facilmente rompíveis." (38)

O papel e a posição do homem livre pobre são contraditórios. "encontra sua  subsistência em atividades residuais, para o exercício das quais depende da autorização do dono da terra. O direito de moradia, contrato verbal de pessoa para pessoa, implica na reciprocidade de serviços por parte do morador. Mas a outra ordem de relações, regida pelo interesse, leva frequentemente o fazendeiro a expulsar o morador quando precisa das terras anteriormente cedidas. Sua lealdade, portanto, é alternadamente solicitada e violada. Uma vez expulso, resta-lhe por o pé na estrada e procurar outro senhor." (38)

Seu lugar é precário, por não ser necessário à atividade produtiva básica e central e porque mesmo na pecuária extensiva a pouca necessidade de braços e a facilidade de substituí-los o colocam numa posição de fraqueza. (38-9)

"A área em que se move é a área das relações pessoais e contingentes, seja com seus companheiros de destino, seja com os poderosos dos quais depende: 'jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é feito um por si' " (39)

"Destituído de formas organizatórias e institucionais que regulamentem suas relações com os demais homens, os conflitos, por mínimos que sejam, só podem ser resolvidos mediante a violência." Como diz Maria Sylvia de Carvalho Franco: 'Em seu mundo vazio de coisas e falto de regulamentação, a capacidade de preservar a própria pessoa contra qualquer violação aparece como a única maneira de ser: conservar intocada a independência e ter a coragem necessária para defendê-la, são condições de que o caipira não pode abrir mão, sob pena de perder-se. A valentia constitui-se, pois, como valor maior de suas vidas.' (39)

"É isto que o percuciente Riobaldo está expressando, quando diz: 'Em jagunço com jagunço, o poder seco da pessoa é que vale' (39)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 2 - Capítulo 1 - A lei e a lei do mais forte

Capítulo 1: A lei e a lei do mais forte

"Aparentemente, o jagunço não é um criminoso vulgar. As noções de honra e vingança, bem como o cunho coletivo de sua atuação, estão inextrincavelmente ligados à sua figura. O jagunço não é um assassino: ele é um soldado, numa guerra; o jagunço não mata: ele guerreia; o jagunço não rouba: ele saqueia e pilha. 'Crime, que sei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado ... não cumprir a palavra...', diz o grande chefe de jagunços Sô Candelário." (18)

"A tradição atribui lances cavalheirescos ao jagunço, relatando como reconhece e premia a valentia de um adversário, como respeita mulheres e velhos, como tira dos ricos para dar aos pobres. Em ocasiões amenas, assim se porta o bando de Riobaldo." (...) "Mas os relatos históricos de sadismo, torturas requintadas e crueldade sem limites também são numerosos; Riobaldo mata, estupra, incendeia, destrói. E conta de um jagunço aposentado, velho e doente, que dizia: 'Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, para uma boa esfola, com faca cega... Mas, primeiro, castrar...'" (18)

"É possível, e fácil, ver no jagunço uma força do mal, um delinquente aquém dos requisitos da humanidade. Também é possível, e sedutor, ver nele um herói, um revolucionário, um Robin Hood caboclo. O problema é que essas duas visões são contraditórias e erigem-se em impasse." (18)

Euclides da Cunha já havia se defrontado com este problema do sertanejo e oscilado entre a admiração pelo tipo humano geral (18)
 ('antes de tudo, um forte') e os sertanejos concretos, em que "essa admiração aparece mesclada de repulsa". (19)

É assim que acaba por recorrer à ambiguidade para descrever Antônio Conselheiro: 'Parou aí, indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados.'" (19)

"O exercício privado e organizado da violência é, ao longo da história brasileira, uma instituição e uma exceção. 'Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potentes chefias. A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador - todos donos de agregados valentes, turmas de cabras no trabuco e na carabina escopetada!' " (21)

"É tradição brasileira secular a presença de uma força armada a serviço de um proprietário rural, grupo de função defensiva e ofensiva, presente dentro da propriedade, para garantir limites, mas igualmente importante por seu desempenho em eleições, seja pelo número de votos que representa, seja pelos votos que pode conseguir por intimidação ou mediante fraude. O braço armado serve para prevenir conflitos e para resolvê-los; a violência é uma prática rotineira, orientando o comportamento dos seres humanos em todos os níveis: 'O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!' " (21)

Oliveira Vianna chegou a agrupar uma série de fenômenos com o rótulo de instituições do nosso direito público costumeiro: (21)
"a solidariedade da família senhorial, o banditismo coletivo, o fanatismo religioso, o partido do coronel. Os usos e costumes decorrentes destas instituições cobrem gama variada: a vingança familiar e o nepotismo, os resgates de cidades ocupadas, as seratas e sebaças - nome genérico para saque e depredação, - o assassínio de adversários políticos, a fraude eleitoral, a corrupção das autoridades locais, etc." (22)

Haveria também uma tradição a nível do indivíduo, ainda segundo Oliveira Vianna (22):
'um sistema puramente costumeiro de motivações e atitudes e determinando, por fim, a conduta real, efetiva, dos cidadãos. Conduta, porém, sempre orientada num sentido diferente, e, às vezes, em inteira desconformidade com aqueles padrões teóricos das elites nas suas esplendorosas Cartas Constituicionais.'  Exemplos disso, embora casos extremos, seria o comportamento de bandoleiros famosos como o próprio Lampião, de acordo com o comportamento ratificado pela ética costumeira, motivado pela vingança e pela honra. (23)

Tudo isto faz parte de um "sistema global", "um regime autoritário de dominação, ao poder que emana de cima, do chefe ou senhor", em que "a massa da população, a ele submetida, não conheceu qualquer forma de organização que lhe fosse própria e defendesse seus interesses" A razão para isso era a marginalidade social e produtiva dos moradores subordinados ao senhor de engenho ou da fazenda, em que o núcleo produtivo repousava na população escrava (23)

"Essas massas subordinadas ao dono da terra são por ele arregimentadas, seja para defesa da propriedade, seja para objetivos eleitorais; é assim que se vêm a constituir as unidades mínimas de poder no país. Dessas unidades e das alianças entre os senhores que as lideram se originam-se os partidos municipais, estaduais e nacionais." (24)

"O fenômeno do chamado banditismo aparece assim inserido no cerne mesmo da organização sócio-econômico-política. Não como um acidente ou uma exceção, mas em sua necessidade histórica, da qual decorrem outras práticas costumeiras e tipos sociais" como o capanga ou cabra, o matador pago e o cangaceiro com suas instituições, bem como a imunidade policial do feudo e o dever de obediência e fidelidade do morador ao senhor, ao lado da correspondente proteção e assistência. (aqui novamente ela está se baseando em Oliveira Vianna) (24)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 3 - Capítulo 2 - O sertão e o gado

Capítulo 2: O sertão e o gado

"Dá-se o nome de sertão a uma vasta e indefinida área do interior do Brasil, que abrange boa parte dos Estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Goiás e Mato Grosso. É o núcleo central do país. Sua continuidade é dada mais pela forma econômica predominante, que é a pecuária extensiva, do que pelas características físicas, como tipo de solo, clima e vegeta- (25)
ção", que podem variar da caatinga seca bem ao lado de um luxuriante barranco de rio (26)

"É a presença do gado que unifica o sertão. Na caatinga ária e pedregosa como nos campos, nos cerrados, nas virentes veredas; por entre as pequenas roças de milho, feijão, arroz ou cana, como por entre as ramas de melancia ou jerimum; junto às culturas de vazante como às plantações de algodão e amendoim; - lá está o gado, nas planícies como nas serras, no descampado como na (26)
mata. As reses pintalgam qualquer tom da paisagem sertajeja, desde a sépia na caatinga no tempo das secas até o verde vivo das roças novas no tempo das águas. " (27)

"O boi é presença marcante no Grande Sertão: Veredas. É o mundo da pecuária extensiva que ali está representado, como substrato material da existência; por isso, raramente em primeiro plano, mas formando a continuidade do espaço e fechando seu horizonte, impregnando a linguagem desde os incidentes narrativos até a imagética. O gado figura praticamente em todas as páginas: da primeira, em que Riobaldo fala do 'bezerro erroso', às últimas, quando reencontra Zé Bebelo que acabara de 'negociar um gado'. Em suas andanças, os jagunços de Guimarães Rosa estão sempre cruzando seus caminhos com os caminhos do gado; encontram vaqueiros, boiadeiros e reses. Os bois que encontram são indícios do que devem esperar das redondezas; se ariscos e bravios, não há gente por perto; se magros, apontam para a penúria do local, se bem nutridos são sinal de fartos recursos materiais." (27)

"A importância fundamental do gado no sertão se inscreve na frequência dos toponímicos no romance: Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita, Lagoa-do-Boi, Curral de Vacas" etc; Riobaldo fala de muitos rios e ribeirões chamados do Boi ou da Vaca; alguns jagunços tem nomes derivados: João Vaqueiro, Marruaz, Carro-de-boi. "Os jagunços cantam a Moda-do-Boi e quando Medeiro Vaz morre Riobaldo se lembra dos versos 'Meu boi preto mocangueiro/ árvore para te apresilhar?' " (27)

Objetos de couro e chifre são frequentes e mostram todo um modo de vida (27),
toda uma 'época do couro'. Objetos significativos como a capanga 'bordada e historienta' que primeiro guarda os utensílios de cuidado pessoal de Diadorim e que depois este presenteia a Riobaldo; o couro que levantaram para resguardar o cadáver de Medeiro Vaz do vento. (28)

Riobaldo usa os bois como termo de comparação com os homens: 'Todo boi, enquanto vivo, pasta' (28)

Bois e boiadas servem para o narrador-personagem construir imagens sobre seus chefes e companheiros, bem como sobre as relações entre eles. "Os jagunços são vistos como rebanho e só os chefes merecem imagens individuais". Sobre os bandos de jagunços, compara seu governo 'com o governo de um bando de bichos - caititu, boi, boiada'; já um chefe como Ricardão é comparado a um 'zebú guzerate' (28)
e Joca Ramiro é comparado a 'um touro preto', enquanto Medeiro Vaz 'morreu em pedra, como o touro sozinho berra feio' (29).

"A presença esparsa e constante do gado solto é a marca do Grande Sertão", onde predomina a criação mais rudimentar e primária. (29)

Historicamente, a criação de gado era subalterna em relação à produção agro-industrial, do açúcar e depois do café, sendo "empurrada para as regiões de solo pouco fértil" (30)

"A lógica do capital determinou que as melhores terras, as litorâneas e férteis, fossem reservadas para a lavoura da cana; a produção do açúcar, baseada no braço escravo, ocupa a posição de empreendimento prioritário que determina a posição de todos os demais. Mas, para garantir que a produção de açúcar fosse possível, era preciso garantir a subsistência de todas as pessoas envolvidas no processo produtivo e em sua comercialização: e essa é a razão da criação de gado", além de também fornecer força-de-trabalho para o engenho. (31)

Por outro lado, havia terra sobrando, mesmo que não aproveitável para o cultivo principal. Há outros fatores que também contribuem para a criação de gado no sertão: o gado é uma mercadoria que transporta a si mesma e a necessidade de capital e de mão de obra é mínima. (31)

"A pecuária foi uma espécie de filha-pobre da economia colonial" (31)

O empresário desprovido de maiores recursos podia iniciar a atividade com um pequeno investimento, erguendo uma casa com cobertura sobretudo de palha, currais e algumas cabeças de gado. (32)

Para os trabalhadores, os poucos necessários, as tarefas não eram consideradas as piores. "Seja para o vaqueiro, que cuida do gado dentro da fazenda, seja para o boiadeiro, que se encarrega da condução das boiadas fora delas, o gado propiciou tarefas não tidas por vis na sociedade colonial: o fato é que a pecuária sertaneja sempre foi trabalho para homens livres." (32)

Além de não ter que trabalhar de sol a sol todos os dias, o trabalhador perambula, dando-lhe "no mínimo, um simulacro físico de liberdade" e, ao mesmo tempo, anda a cavalo, sinal de posição já em Portugal: 'Homem a pé, esses Gerais comem'. (32)

Ainda é importante registrar que o objeto do trabalho é o animal, que muitas vezes acaba por constituir a própria remuneração. Por um lado, este trabalho implica numa 'proximidade física e afetiva' entre homem e animal, em que 'a percepção dos seres naturais é parte integrante da vida, como fonte de informação, como fruir de companhia, como garantia de sobrevivência'. P.ex. "o papel importante que tem o ensino da observação e o deleite da natureza e dos bichos feito por Diadorim" (33)

Por outro lado, o pagamento em gado permite a possibilidade de passar de empregado a dono, exercendo uma enorme atração não somente para os brancos mas também para mulatos, mestiços e pretos forros, esperançosos de um dia se tornarem fazendeiros. (34)


Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.