segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 2 - Capítulo 1 - A lei e a lei do mais forte

Capítulo 1: A lei e a lei do mais forte

"Aparentemente, o jagunço não é um criminoso vulgar. As noções de honra e vingança, bem como o cunho coletivo de sua atuação, estão inextrincavelmente ligados à sua figura. O jagunço não é um assassino: ele é um soldado, numa guerra; o jagunço não mata: ele guerreia; o jagunço não rouba: ele saqueia e pilha. 'Crime, que sei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado ... não cumprir a palavra...', diz o grande chefe de jagunços Sô Candelário." (18)

"A tradição atribui lances cavalheirescos ao jagunço, relatando como reconhece e premia a valentia de um adversário, como respeita mulheres e velhos, como tira dos ricos para dar aos pobres. Em ocasiões amenas, assim se porta o bando de Riobaldo." (...) "Mas os relatos históricos de sadismo, torturas requintadas e crueldade sem limites também são numerosos; Riobaldo mata, estupra, incendeia, destrói. E conta de um jagunço aposentado, velho e doente, que dizia: 'Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, para uma boa esfola, com faca cega... Mas, primeiro, castrar...'" (18)

"É possível, e fácil, ver no jagunço uma força do mal, um delinquente aquém dos requisitos da humanidade. Também é possível, e sedutor, ver nele um herói, um revolucionário, um Robin Hood caboclo. O problema é que essas duas visões são contraditórias e erigem-se em impasse." (18)

Euclides da Cunha já havia se defrontado com este problema do sertanejo e oscilado entre a admiração pelo tipo humano geral (18)
 ('antes de tudo, um forte') e os sertanejos concretos, em que "essa admiração aparece mesclada de repulsa". (19)

É assim que acaba por recorrer à ambiguidade para descrever Antônio Conselheiro: 'Parou aí, indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados.'" (19)

"O exercício privado e organizado da violência é, ao longo da história brasileira, uma instituição e uma exceção. 'Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potentes chefias. A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador - todos donos de agregados valentes, turmas de cabras no trabuco e na carabina escopetada!' " (21)

"É tradição brasileira secular a presença de uma força armada a serviço de um proprietário rural, grupo de função defensiva e ofensiva, presente dentro da propriedade, para garantir limites, mas igualmente importante por seu desempenho em eleições, seja pelo número de votos que representa, seja pelos votos que pode conseguir por intimidação ou mediante fraude. O braço armado serve para prevenir conflitos e para resolvê-los; a violência é uma prática rotineira, orientando o comportamento dos seres humanos em todos os níveis: 'O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!' " (21)

Oliveira Vianna chegou a agrupar uma série de fenômenos com o rótulo de instituições do nosso direito público costumeiro: (21)
"a solidariedade da família senhorial, o banditismo coletivo, o fanatismo religioso, o partido do coronel. Os usos e costumes decorrentes destas instituições cobrem gama variada: a vingança familiar e o nepotismo, os resgates de cidades ocupadas, as seratas e sebaças - nome genérico para saque e depredação, - o assassínio de adversários políticos, a fraude eleitoral, a corrupção das autoridades locais, etc." (22)

Haveria também uma tradição a nível do indivíduo, ainda segundo Oliveira Vianna (22):
'um sistema puramente costumeiro de motivações e atitudes e determinando, por fim, a conduta real, efetiva, dos cidadãos. Conduta, porém, sempre orientada num sentido diferente, e, às vezes, em inteira desconformidade com aqueles padrões teóricos das elites nas suas esplendorosas Cartas Constituicionais.'  Exemplos disso, embora casos extremos, seria o comportamento de bandoleiros famosos como o próprio Lampião, de acordo com o comportamento ratificado pela ética costumeira, motivado pela vingança e pela honra. (23)

Tudo isto faz parte de um "sistema global", "um regime autoritário de dominação, ao poder que emana de cima, do chefe ou senhor", em que "a massa da população, a ele submetida, não conheceu qualquer forma de organização que lhe fosse própria e defendesse seus interesses" A razão para isso era a marginalidade social e produtiva dos moradores subordinados ao senhor de engenho ou da fazenda, em que o núcleo produtivo repousava na população escrava (23)

"Essas massas subordinadas ao dono da terra são por ele arregimentadas, seja para defesa da propriedade, seja para objetivos eleitorais; é assim que se vêm a constituir as unidades mínimas de poder no país. Dessas unidades e das alianças entre os senhores que as lideram se originam-se os partidos municipais, estaduais e nacionais." (24)

"O fenômeno do chamado banditismo aparece assim inserido no cerne mesmo da organização sócio-econômico-política. Não como um acidente ou uma exceção, mas em sua necessidade histórica, da qual decorrem outras práticas costumeiras e tipos sociais" como o capanga ou cabra, o matador pago e o cangaceiro com suas instituições, bem como a imunidade policial do feudo e o dever de obediência e fidelidade do morador ao senhor, ao lado da correspondente proteção e assistência. (aqui novamente ela está se baseando em Oliveira Vianna) (24)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

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