sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Leituras de Rosa - Trilhas no Grande sertão - Manuel Cavalcanti Proença 1958 - parte 3 - Don Riobaldo do Urucúia, cavaleiro dos campos gerais

"Redemoinho", xilogravura
de Arlindo Daibert
No Capítulo II, Cavalcanti Proença começa classificando GSV como uma epopéia. (13) Apesar de abrir mão de uma argumentação mais copiosa e abrangente, assinala alguns elementos que apoiariam a sua hipótese.

Temos, por exemplo: "A intercalação de episódios convergentes com a ação principal, mas de função adjuntiva, podendo adquirir independência formal, aparece frequentemente (13);
desde logo, podem ser enumerados o do Aleixo, com os três filhos cegos, o do Joé Cazuzo, com visões sobrenaturais em pleno combate, o de Andalécio e Antonio Dó atacando o porto de São Francisco." (14)

Estes episódios entremeando os contos - característica de um estilo épico - aparecem em grande número em contos e novelas de Guimarães Rosa. No caso do GSV, o episódio de Maria Mutema "é um verdadeiro conto incrustado no corpo do romance, como processo de reter o desenvolvimento da ação, prolongando o interesse da narrativa." (14)

O julgamento de Zé Bebelo é para Proença "o ponto nodal"; a morte de Joca Ramiro "desata novamente a ação", "que, daí por diante, se desencadeia, em plano diferente, até a morte de Diadorim". Proença crê que temos aqui como tema, "material de filiação popular" (14)

O argumento central é que a própria figura do "cangaceiro", "como herói de poesia narrativa sertaneja, é assunto pacífico entre folcloristas, e o paralelismo com as epopéias medievais e seu sucedâneo - o romance de cavalaria, já tem sido apontado" (15)

Desta forma, Riobaldo seria "uma estilização da imagem convencional que o povo estabeleceu para seus heróis", com uma trajetória de menino sem pai, "tímido, mas com vários embriões de virtudes heróicas, que se irão acentuando, até elevá-lo, meio inconscientemente, a chefe indiscutido" (15)

Ele é uma espécie de "cangaceiro cortês", que não consegue cometer barbaridades, "não tolera a deslealdade e os desleais lhe são inimigos de morte, os 'judas'." (15)

E mais: "Muito folcloricamente, procura o (15)
equilíbrio social e tem rasgos de bandido romântico, favorecendo com esmola grande a mulher que dá à luz no casebre miserável." (16)

Diadorim lhe propõe cumprir algo típico desses romances de cavalaria: o voto de castidade (16)

"Os chefes sertanejos guardam traços medievais", desde a imponente e respeitável figura de Medeiro Vaz, 'duma raça de homem que o senhor não mais não vê' (16), passando por Joca Ramiro, que talvez se inspire em Rolando, "montado em cavalo branco feito um São Jorge" (17) e chegando a Zé Bebelo, que, "prisioneiro, submetido a julgamento, arenga como guerreiro medieval: '... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero julgamento, esta bizarria...' " (17). No fim do seu discurso, usa até uma expressão medieval: 'Mas, homem sou, de altas cortezias'. (18)

O julgamento seria "um recorte de romance de cavalaria transposto para o sertão", no qual "A grandiloquência das palavras realça a nobreza da ação" (18)

Um exemplo estaria no verdadeiro diálogo de barões entre Joca Ramiro e Zé Bebelo:

'- O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra.' (18)

Outro elemento caracteristicamente épico: "O sentimento de honra - o orgulho da luta sem outro galardão além da glória - inflama os jagunços do Grande Sertão." (19) Riobaldo, no mencionado julgamento, chega a dizer, coisa que Sô Candelário também faz, que a história "há de guardar o nome dos valentes, a fama de suas façanhas" (19)

Joca Ramiro é morto à traição como os heróis lendários e seus assassinos se degradam como "Don Galvan, cavaleiro de má andança, réu de covardia e deslealdade." (20)

Riobaldo anuncia aos companheiros de outro bando a morte de Joca Ramiro com cena e palavras medievais. (20)

Medeiro Vaz não consegue atravessar o Liso do Sussuarão da mesma forma que Percival ou Lancelote, "apesar de todos os preparativos", mas Riobaldo, assim como Don Galaaz, "realiza, protegido pelo acaso, sem mesmo se haver preocupado com provisões." (20)

As mudanças de nome, Riobaldo, depois jagunço Tatarana, depois chefe Urutu-Branco, são características dos cavaleiros corteses. (20)

Até a idade de ouro, de Ovídio, presente nos romances de cavalaria, comparece, com as enxadas que algum dia sairão sozinhas a capinar a roça. (20-21)

E os guerreiros são enumerados em véspera de batalha como nos romances de cavalaria (21):

'Para que relembrar, divulgar dum e dum, dar resenhas? Do Dimas Dôido - que xingava nomes até a galho de árvore que em cara dele espanejasse, ou até algum mosquito chupador. Do Diodôlfo (...)' (21)

"O encontro com o povo dos catrumanos, na região inóspita, é episódio de frequente correspondência em romances de cavalaria; lembremos a Ilha Encantada onde esteve Clarimundo" (22)

A vingança contra os 'judas' é como "uma demanda medieval, a luta de Deus contra o Diabo" (22)

"os cavalos passam a adivinhar que Riobaldo, agora, é homem sobrenatural, conserva o cheiro de quem o diabo farejou: aquele gateado, formoso, de imponência e brio, que se abaixa diante dele, depois de quase bolear com o dono, era o diabo e, por isso, gateado. Empina violentamente, mas Riobaldo lhe diz o nome: Barzabu. E porque havia adquirido ascendência sobre o diabo, porque deixára de temê-lo, altas horas na encruzilhada, o cavalo se submete, aceita que o dono lhe mude o nome para Siruiz, manso, doce nome do poeta da neblina." (23)

"Ao dono das terras ele dá como gage de aliaça, não 'correntias moedas de ouro do rei, mas costumeiras prendas de louvor aos santos'" (23)

"A convocação dos catrumanos para seguirem com os jagunços tem um sentido de grandeza legendária." (23)

"Na comitiva, o cego e o menino, inúteis e, por isso mesmo, dão a nota de grandeza e majestade, viajando a par com ele; Diadorim é o cavaleiro gentil" (24)

"Antes, porém, de empreender a demanda dos judas, é preciso voltar aos campos do Urucúia, receber os eflúvios da terra, encher os olhos da contemplação dos buritis, os ouvidos, com o berro dos bois. Quem vai vencer ou morrer, deve dar adeus às coisas queridas, à terra-mãe." (24)

"Em sonhos corteses, pensa em Otacília", 'montada num bom cavalo corcel', com a noiva mostrando 'a grandeza real dela' (24)

A vingança contra os judas é um bem que se faz à Humanidade: 'porque eu ia livrar o mundo do Hermógenes' (24)

"O combate a cavalo, no Tamanduã-tão, é uma verdadeira batalha campal (...) Ali, ele próprio se benze. Era o enviado de Deus, não era pactário." (25)

"Vez por outra, conscientemente ou não, o romancista deixa entrever em certas expressões as raízes antigas de sua efabulação: Joca Ramiro é 'um imperador em três alturas' um chefe valente é par-de-França, Riobaldo lê o Senclér das Ilhas e se compara a Guy de Bourgogne." (25)

"Espalham-se por todo o livro as deixas para que se descubra o sexo de Diadorim" (26)

[i] traços físicos como mãos muito brancas, braços bem feitos, cintura fina, passo curto, pestanas compridas, boca bem feita, nariz fino e por aí vai... (26)

[ii]  Diadorim usa uma tesoura de prata e navalha, que guarda em capanga decorada; ele corta os cabelos de Riobaldo; (27)

[iii] Diadorim faz segredo do próprio corpo se banhando de madrugada sozinho, desaparece de forma inexplicável, nunca tira o jaleco... (27)

[iv] tem um pudor feminino, pedindo a Riobaldo que faça suas necessidades longe dele (27)

[v] apesar de ser o guerreiro mais valente, com coragem que nunca vacila, tem reações bastante femininas: chora na chegada de Joca Ramiro, alegre com a vitória praticamente dança e se abraça impulsivamente com Riobaldo quando do julgamento de Zé Bebelo; quando morre o pai desmaia, soluça e tem quase um uivo de dor, fugindo para chorar escondido, deitado na relva; "Na Guararavacã, agrada as crianças" (27) E é ele que lava a roupa dos dois. Fica deslumbrado com uma pedra preciosa (Arassuaí) e no meio dos jagunços é o 'pé de salão'; quando sozinho gostava de cantarolar mas não fazia isto na frente dos outros, para não se trair pela voz (28)

[vi] Às vezes quase se revela diretamente, como quando tem tanto ciúme de Otacília que ameaça apunhalar Riobaldo ou quando diz a este que depois da vingança irá lhe contar um segredo. (28)

[vii] Há a sua reação ambígua diante do amor de Riobaldo, nunca deixando transparecer o que pensava ou sentia (28-9)

[viii] E há deixas, indiretas como o sonho em que Diadorim passa em baixo de um arco-íris ou quando Diadorim chama entusiasmado uma flor de cavalheiro da sala mas é corrigido por Alaripe, que diz que na sua terra o nome dela é dona-joana (29)

[ix] E diretas: "Ao narrar o encontro de Diadorim e Otacília, de recíproca hostilidade instintiva, o autor revela tudo, para seu próprio divertimento; quem até agora não descobriu, não o fará mais, até que a morte conte o grande segredo." (29)

(Continua, se os deuses forem bons :-) )

Bibliografia:

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Pedacinho de Rosa - Os demos

A figura do diabo é construída de forma ambígua na narrativa de Riobaldo. O Cujo se manifesta de diversas formas; se confunde até mesmo com Deus. Rosa brinca com a língua, pois afinal, um nome só para o Tal seria pouco:

"O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Côxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem Gracejos... Pois, não existe!"

("Grande Sertão: Veredas")

Leituras de Rosa - Trilhas no Grande sertão - Manuel Cavalcanti Proença 1958 - parte 2 - O plano subjetivo

"Redemoinho", xilogravura de
Arlindo Daibert
No capítulo I, "O plano subjetivo", Cavalcanti Proença desenvolve uma ideia central, de que o livro se estruture em "duas linhas paralelas":

"a objetiva, de combates e andanças - criadoras da personalidade do jagunço que termina chefe do bando; e a subjetiva, marchas e contramarchas de um espírito estranhamente místico, oscilando entre Deus e o Diabo." (6)

Este jagunço aposentado narraria, mais do que sua vida de aventuras, "a secular pendência entre o espírito do Bem e do Mal." (6)

Há uma oscilação encarnada em Riobaldo e "sua permanente preocupação em saber até onde somos criaturas de Deus ou escravos do Demo" (6)

Há um "mundo instável, em que só Deus é estático." (6).

Riobaldo sabe que "Deus é a justiça", "mas não compreende suas misteriosas sentenças, desconcerta-o a cegueira dessa justiça que castiga nos filhos inocentes, o crime do Aleixo. Diante do sofrimento dos cavalos feridos a bala, morrendo sem culpa, alvejados pelos jagunços, pensa: 'Acho que Deus não quer consertar nada, a não ser pelo completo contrato: Deus é uma plantação. A gente - é as areias.' " (7)

Diante da incerteza permanente, Riobaldo, agora fazendeiro sedentário e tranquilo, "vai ao encontro de todos os cultos: 'Reza é que salva da loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio.'" (8)

Para Cavalcanti Proença, ao fim da vida, Riobaldo "chega a um quase desencanto religioso, descobrindo, por si, a sabedoria do Eclesiaste, convencido de que é preciso viver com alegria, pensar para diante. 'Mas eu, hoje em dia, acho que Deus é alegria e coragem - que Êle é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal.'" (9)

Haveria uma "superposição de planos" que poderiam ser divididos em três partes: "A primeira, individual, subjetiva, que acabamos de resumir, antagonismo entre os elementos da alma humana; a segunda, coletiva, subjacente, influenciada pela literatura popular que faz do cangaceiro Riobaldo um símile de herói medieval, retirado de romance de cavalaria e aculturado nos sertões do Brasil Central [o que será o segundo capítulo do livro de Proença]; a terceira, telúrica, mítica, em que os elementos natu- (9)
rais - sertão, vento, rio, buritis - se tornam personagens vivos e atuantes." (10)

Esta análise, todavia, seria uma simplificação "pois que as várias camadas se interpenetram" (10)

"Decorre dessa complexidade uma abundância de elementos alegóricos, uma simbologia muito densa, além do caráter polissêmico das personagens." (10)

Para Proença, Diadorim "simboliza, algumas vezes, o anjo-da-guarda, a consciência de Riobaldo." Certa vez distrai Riobaldo da ideia fixa de fazer um pacto com o Diabo e este último se esconde de Diadorim quando resolve pactuar (10); Diadorim também o impede de matar o leproso e d'outra feita teme pela salvação de Riobaldo, a ponto até de esquecer do ciúme e mandar um recado para Otacília rezar pelo noivo. (11)

Outra prova deste papel de Diadorim: "Diadorim é o maior inimigo do Hermógenes, e, então, transfigurado no arcanjo Miguel, é ele quem vence e mata o Pactário." (12)

O próprio Riobaldo, "quando Diadorim morre, quando o Anjo o deixa", desmaia: "'Como de repente não vi mais Diadorim! No céu um pano de núvens.'" (12)

(Continua amanhã, se os deuses forem bons :-) )

Bibliografia:

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.





domingo, 23 de novembro de 2014

Leituras de Rosa - Trilhas no Grande sertão - Manuel Cavalcanti Proença 1958 - parte 1 - Introdução

"Redemoinho", xilogravura de Arlindo Daibert
Outro importante estudo veio a luz em 1958: Trilhas no Grande sertão. Logo de saída, na "Introdução", Manuel Cavalcanti Proença faz uma importante comparação entre a obra e o meio físico em que ela se desenrola, "por estas seiscentas páginas sem capítulos":

"Contínuas, mas não uniformes, imitam a região dos campos do planalto onde se sucedem sempre, sem extremar-se, os cerrados, as matas ciliares dos rios, as abertas, as várzeas das cabeceiras com buritis e buritiranas escutando conversas de araras e maracanãs." (3)

Neste sertão ou sertões de Mato Grosso, Goiás, Bahia e Minas Gerais, a natureza seria marcada pelos opostos violentos: períodos de seca quase absoluta alternando-se com grandes chuvas, ventos que espalham a chama até um riacho que lhes barre o caminho, solo "encarvoado" que reverdece em horas "logo nas primeiras chuvas do fim de setembro" (3).

Conclui para fechar esta parte:

"Neste mundo, fogo e água, Deus e o Demo, Guimarães Rosa acendeu gambiarras para Riobaldo passar." (4)

(Continua amanhã, se os deuses forem bons :-) )

Bibliografia:

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.






sábado, 22 de novembro de 2014

Pedacinho de Rosa - Urubus

João Guimarães Rosa, caricatura
por Baptistão
O amor e o respeito de Guimarães Rosa pela natureza em todas as suas dimensões
fica expresso nesta descrição cheia de carinho que Pedro Orósio, o catrumano protagonista da novela "Recado do Morro" faz… dos urubus:

"Assaz quase milhares. Que passam tempo em enormes voos por cima do mundo, como por cima de um deserto, porque só estão vendo o seu de-comer. Por isso, despois, precisam de um lugar sinaladamente, que pequeno seja. Para eles, ali era o mais retirado que tinham, fim-de-mundo, cafundó, ninguém vinha bulir em seus ovos - 'Arubú tirou herança de alegre-tristonho… ' Tinha hora, subiam no ar, um chamava os outros, batiam asa, escureciam o recanto. Algum ficava quieto, descansando suas penas, o que costuravam em si, com agulha e linha preta, parecia. (…) Mas, bem antes, todos estavam ali, de patuleia, ocasiões de acasalar. Os urubus, sem chapéu, e dansam seu baile. Quando é de namoro, um figurado de dansa, de pernas moles, despés, desesticados como de um chão queimante, num rebambejo assoprado, de quem estaria por se afogar no meio do ar."

("Recado do Morro")

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Rosa em vídeo - Antonio Candido

Antonio Candido gravou uma belíssima e empolgada análise de Grande sertão: veredas, obra chamada por ele de "romance metafísico", explicando de que maneira Guimarães Rosa utiliza o Sertão para pensar "questões universais". É precedida de um breve comentário sobre Sagarana e há também algumas alusões ao próprio Guimarães Rosa enquanto pessoa, a suas conversas com Candido e a suas posições ideológicas. Também compara Rosa a Euclides da Cunha (diferenciado-os), a Dostoievski e a outros autores (que também buscariam questões essenciais do homem). Salienta, sobretudo, a "extrema ambiguidade", "o paradoxo, o deslizamento constante de sentido" no romance, que chega a ser chamado por ele de sur-regionalismo (que também estaria presente em Garcia Marquez e Juan Rulfo) (18'):

Antonio Candido sobre Grande sertão: veredas

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

(Continuação) Leituras de Rosa - "O homem dos avessos" ("O Sertão e o Mundo") - Antonio Candido 1957 - parte 4 (Final)

"Diadorim II", xilogravura
 de Arlindo Daibert

(Continuação - parte 4 - final)

O problema

Depois de apresentar esta magnífica análise, Candido, com humildade, a relativiza:

"É claro que essas interpretações são arbitrárias; além disso, iluminam apenas um dos muitos lados da obra, visando contribuir para que o leitor esqueça ao menos provisoriamente os pendores naturalistas a fim de penetrar nessa atmosfera reversível, onde se cortam o mágico e o lógico, o lendário e o real. Só assim poderá sondar o seu fundo e entrever o intuito fundamental, isto é, o angustiado debate sobre a conduta e os valores que a escoltam." (125)

Em GSV "o tonus é devido à crispação incessante do narrador em face dos atos e sentimentos vividos, traduzidos pela recorrência dos torneios de expressão, elaborados e reelaborados a cada página em torno das obsessões fundamentais." (126)

O pacto com o demônio é o "símbolo escolhido para dinamizar a recorrência". Se antes ele era um instrumento iniciatório [de Riobaldo enquanto chefe], agora, "se encararmos a individualidade de Riobaldo, a sua condição singular de homem, o demônio volta a simbolizar, como para Fausto ou para Peter Schmilh, a tentação e o mal." (126)

"O grande problema, para o narrador, é a existência dele: existe ou não?" (126)

[i] "Em princípio, sente que é um nome atribuído à parte torva da alma" mas sempre resta uma dúvida. Afinal, se o diabo, invocado nas Veredas-Mortas, não apareceu, por outro lado a partir daí houve nele uma mudança e "depois dela é que foi capaz de realizar coisas prodigiosas, inclusive a referida travessia do Sussuarão, fechado ao comum dos homens e docilmente aberto ao seu mando." (126)

"Daí a palavra que o autor inventou (...) para sugerir, conforme os seus processos lexicogênicos, a operação de um sortilégio sobrenatural: 'Sobrelégio?'" (126)

[ii. O diabo não precisa existir para se fazer sentir e estar, de certo modo, presente]

"E como (126)
tem consciência de que a manifestação concreta não é necessária para demonstrar a existência do Cujo, - mais princípio do que ente - permanece, no fundo, amarrado a ele, que se torna de certo modo o grande personagem, tanto mais obsedante quanto menos palpável" (...) 'Quem muito se evita, se convive' (127)

"Porque nada encarnaria melhor as tensões da alma, nesse mundo fantástico, nem explicaria mais logicamente certos mistérios inexplicáveis do Sertão." Por exemplo, a amizade ambígua por Diadorim. (127)

"O demônio surge, então, como acicate permanente, estímulo para viver além do bem e do mal; e bem pesadas as coisas, o homem no Sertão, o homem no Mundo, não pode existir doutro modo a partir duma certa altura dos problemas. 'Viver é muito perigoso' - repete Riobaldo a cada passo; não só pelos acidentes da vida, mas pelas dificuldades em saber como vivê-la." (128)

'O senhor escute o meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver - não é? - é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo. O sertão me produz, depois me cuspiu do quente da boca...' (128)

'Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa.' (128)

'Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.' (128)

"Daí o esforço para abrir caminho, arriscando perder a alma, por vezes, mas conservando a integridade do ser como de algo que se sente existir no próprio lanço da cartada. A ação serve para confirmar o pensamento, para dar certeza da liberdade." (128)

'Ao que naquele tempo, eu não sabia pensar com poder. Aprendendo eu estava? Não sabia pensar com poder - por isso eu matava.'

'Mas liberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer.' (128)

"A vida perigosa força a viver perigosamente, tendendo às posições extremas a que podem levar a coragem, a ambição, o dever." (128)

"Pelo menos duas vezes ocorre na fala do narrador um conceito que exprime este movimento, fundamental na ética do livro e na estrutura dos seus acontecimentos (...) Riobaldo caminha para ele [o ponto a partir do qual não há retorno] e o alcança através do pacto, que é ao mesmo tempo ascese (sob o aspecto iniciatório) e compromisso (sob o aspecto moral), confirmando a sua qualidade de jagunço." (129)

"O jagunço, sendo o homem adequado à terra, ('O Sertão é o jagunço') não poderia deixar de ser como é; mas ao manipular o mal, como condição para atingir o bem possível no sertão, transcende o estado de bandido. (...) O pacto desempenha esta função na vida do narrador, cujo Eu, a partir desse momento, é de certo modo alienado em benefício do Nós, do grupo a que o indivíduo adere para ser livre no Sertão, e que ele consegue levar ao cumprimento da tarefa de aniquilar os traidores, 'os Judas'. Graças a isto é vencida, pelo menos na duração do ato, a ambiguidade do jagunço, que se faz integralmente paladino. Tanto que Riobaldo não prossegue nas armas e se retira, acompanhado por grande parte dos seus fiéis." (129)

Passa a viver na fazenda que herdou do padrinho-pai "ao lado de Otacília, prêmio das andanças." (129)

'(...) o que mormente me fortalecia, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem de bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes gerais da jagunçagem.' (129)

"Renunciando aos altos poderes que o elevaram por um instante acima da própria estatura, o homem do Sertão se retira na memória (129)
e tenta laboriosamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço comovedor, em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos." (130)

"Desliza, então, entre o real e o fantástico, misturados na prodigiosa invenção de Guimarães Rosa como lei da narrativa. E nós podemos ver que o real é ininteligível sem o fantástico e que ao mesmo tempo este é o caminho para o real. Nesta grande obra combinam-se o mito e o logos, o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional, que disputam a mente de Riobaldo, nutrem a sua introspecção tacteante e extravasam sobre o Sertão." (130) 
* * *
"Se o leitor aceitou as premissas deste ensaio, verá no livro um movimento que afinal reconduz do mito ao fato, faz da lenda símbolo da vida e mostra que, na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos à realidade do quotidiano, onde se tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino que nos cabe. (130)

'A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...' (130)

"Entremos nessa realidade fluida para compreender o Sertão, que nos devolverá mais claros a nós mesmos e aos outros. O Sertão é o mundo." (130)

FIM do artigo

Obs: Negritos feitos por Marcos Alvito, não estão presentes no texto original; entre colchetes vêm comentários também feitos por Marcos Alvito. Os itálicos ao contrário, pertencem ao próprio texto de Antonio Candido.

Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. (2006), "O homem dos avessos" In: Tese e Antítese, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. pp.111-130.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

(Continuação) Leituras de Rosa - "O homem dos avessos" ("O Sertão e o Mundo") - Antonio Candido 1957 - parte 3

"Diadorim II", xilogravura
 de Arlindo Daibert

(Continuação - parte 3)

O homem

Cheio de balanço dialético, Antonio Candido afirma que há uma simetria inversa entre homens e terra: "porque os homens, por sua vez, são produzidos pelo meio físico. O Sertão os encaminha e desencaminha, propiciando comportamento adequado à sua rudeza." (117)

Este meio físico inóspito faz "da vida uma cartada permanente ('Viver é muito perigoso') e faz as pessoas criarem uma lei própria oposta à da cidade, exprimindo "essa existência em fio-de-navalha". (117)

Ali não valiam as leis da cidade, ali a lei era feita pelos homens, "recorrendo necessariamente à guerra dos bandos", "Por isso o indivíduo avulta e determina: manda ou é mandado, mata ou é morto. O Sertão transforma em jagunços os homens livres, que repudiam a canga e se redimem porque pagam com a vida, jogada a cada instante." (118)

"Raros são apenas bandidos, e cada um chega pelos caminhos mais diversos." (118)

'Antônio Dó - severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo um homem-de-bem, estouvado, raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim.'

O "Caso mais puro" (...) foi o de Medeiro Vaz, 'o rei dos Gerais': concluindo que no Sertão a justiça depende de cada um, pôs fogo à fazenda dos avós e saiu a chefiar bandos." (118)

"Assim, o Sertão faz o homem." (119)

"Mas o jagunço de Guimarães Rosa não é o salteador; é um tipo híbrido entre capanga e homem-de-guerra. O verbo que os personagens empregam para descrever a sua atividade é 'guerrear', qualificando-se a si mesmos de 'guerreiros' e opondo-se, na força do arrojo, às artes sedativas da paz, como vêm encarnadas, por exemplo, no curioso personagem do fazendeiro seô Habão, contra cuja esperteza e diligência amolece a inteireza do jagunço." (119)

"No código do jagunço, roubar é crime, mas cabe a coleta de tributos, - extorsões em dinheiro e requisições de gado, para manter o bando." (119)

"Se houve no Norte de Minas bandos permanentes tão vultosos quanto os que aqui aparecem, a sua ética e a sua organização não teriam talvez o caráter elaborado que o romancista lhes dá. De fato, percebemos que assim como acontece em relação ao meio, há um homem fantástico a recobrir ou entremear o sertanejo real; há duas humanidades que se comunicam livremente, pois o jagunços são e não são reais." (119)

"Sobre o fato concreto e verificável da jagunçagem, elabora-se um romance de Cavalaria, e a unidade profunda do livro se realiza quando a ação lendária se articula com o espaço mágico." (119)

Transcende-se "a realidade do banditismo político, que aparece então como avatar sertanejo da Cavalaria." (119)

"Há mais de uma afinidade entre as duas esferas, pois também o paladino foi a única possibilidade de 'consertar' um mundo sem lei. Daí possuírem ambos uma ética peculiar, corporativa, que obriga em relação ao grupo, mas liberta em relação à sociedade em geral. Os jagunços deste livro se regem por um código bastante estrito, um verdadeiro bushidô, que regula a admissão e a saída, os casos de punição, os limites da violência, as relações com a população, a hierarquia, a seleção do chefe. E da jagunçagem remontam à lenda." (120)

"Isso posto, explicam-se as batalhas e os duelos, os ritos e práticas, a dama inspiradora, Otacília, no seu retiro, e até o travestimento de Maria Deodorina da Fé Bettencourt Marins no guerreiro Reinaldo (nome cavaleiresco entre todos), filha que era de um paladino sem filhos, como a do romance incluído por Garrett no Romanceiro" (120)

No Orlando Furioso, há uma guerreira que pena de ciúme por um herói e abate "o feroz Rodomonte" e "a Clorinda de Jerusalém libertada, morre em combate e a sua identidade é descoberta." (120)

"O comportamento dos jagunços não segue o padrão ideal dos poemas e romances de Cavalaria, mas obedece à sua norma fundamental, a lealdade; e não há dúvida que também para eles a carreira das armas tem significado algo transcendente, de obediência a uma espécie de dever. No melhor dos casos, o senso de serviço, que é o próprio fundamento da Cavalaria." (120)

Mas os jagunços se aproximam dos cavaleiros na vida real, que faziam algo parecido em uma sociedade sem poder central forte da mesma maneira que o Sertão e baseada na competição entre grupos rurais. Igualmente, praticavam a extorsão e o saque contra os inimigos. (120-1)

O gosto pela crueldade também aproxima os dois: episódio do velho jagunço com saudade de esfolar soldados presos com faca cega, depois de castrá-los e o comportamento de Ricardo Coração de Leão e Filipe Augusto (envio de 15 cavaleiros com olhos vazados e um guia caolho). (121)

Riobaldo, como tantos grandes paladinos (Roldão e Tristão, p.ex.) é de nascimento ilegítimo. "A princípio é uma espécie de escudeiro, adido a Hermógenes, a quem serve no combate; em seguida, após as provas de fogo, é armado cavaleiro, no gesto simbólico em que Joca Ramiro lhe dá o rifle; mais tarde, alcança a chefia, após um ritual de iniciação e em consequência do sacrifício de outros chefes" (...) "Aliás, com este último traço nos encontramos em presença não apenas de elementos medievais, mas de certas constantes mais profundas, que estão por baixo das lendas e práticas da Cavalaria e vão tocar no lençol do mito e do rito." (121)

Primeiro Riobaldo não aceita a chefia, depois de ser apontado por Medeiro Vaz, mas à medida em que adere ao propósito de Diadorim de matar Hermógenes para vingar Joca Ramiro, ele "adquire a força íntima que permite as grandes decisões." Passa a sentir também que nem todos têm as virtudes do mando. (121)

"o modo pelo qual adquire certeza da própria capacidade vem simbolizado no pacto com o diabo." (121)

O pacto com o diabo funciona como "um rito iniciatório equivalente ao de certos romances de Cavalaria, e até certo ponto da própria regra da Cavalaria Militante." (122)

"Como a prece, a vigília d'armas, as provações, o pacto significa, neste livro, caminho para adquirir poderes interiores necessários à realização da tarefa." (122)

Parece, todavia, a negação da Cavalaria "que era voltada para valores cristãos, para a apropriação carismática de virtudes emanadas da própria divindade". Mas, alega Antonio Candido, "estamos no Sertão, fantástico e real, onde a brutalidade impõe técnicas brutais de viver, onde os fenômenos de possessão religiosa, gerando beatos e fanáticos, diferem pouco, na sua natureza e consequência, dos que poderíamos atribuir à possessão demoníaca." (122)

"Para vencer Hermógenes, que encarna o aspecto tenebroso da Cavalaria sertaneja, - cavaleiro felão, traidor do preito e da devoção tributados ao suserano, - é necessário ao paladino penetrar e dominar o reino das forças turvas. O diabo surge então, na consciência de Riobaldo, como dispensador de poderes que se devem obter; e como encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de couraçá-la na dureza que permitirá realizar a tarefa em que malograram os outros chefes." (122)

"Aceito este modo de ver, a cena do pacto, na encruzilhada das Veredas-Mortas, representa um tipo especial de provação iniciatória, um ritual de sentido mágico-religioso, parecido com a prova da Capela Perigosa, nas lendas do Graal. Como se trata para Riobaldo, nessa iniciação às avessas, de assimilar as potências demoníacas que abrem caminho a todas as ousadias, a situação é necessariamente marcada por uma atmosfera de opressivo terror, parte, aliás, de muitos ritos de passagem." (122)

"Cumprido o rito, o narrador aparece marcado pelo sinal básico da teoria iniciatória: a mudança do ser. O iniciado, pela virtude das provas a que se submeteu, renasce praticamente, havendo um grande número de sociedades que fazem a iniciação consistir na simulação da morte seguida de ressurreição. Em Grande sertão: veredas, Riobaldo sai transformado, - endurecido, arbitrário, roçando a crueldade, na prepotência das funções de mando que logo assume, em contraste com a situação anterior, em que as tinha rejeitado." (123)

Até o sentimento por Diadorim, contido até então, "desponta com certa agressividade" (...) e "É Diadorim, aliás, quem nota imediatamente a mudança, chegando a perguntar 'se alguém te botou malefício'." (123)

"Essa transformação, este ingresso numa ordem de ferocidade adequada à vitória, que pretende e obtém sobre o mal (Hermógenes), através do mal (o pacto), é completada por outros sinais de caráter mágico, como a adoção do nome de guerra que Zé Bebelo lhe pusera vagamente, e quase que por pilhéria, mas que agora é assumido no significado pleno: Urutu Branco." Isso é típico de ritos de passagem (123)

"Por último, num traço típico dos livros de Cavalaria, ele (123)
adquire o animal de exceção, o Cavalo Siruiz, fogoso, belo, infatigável, lembrando a mágica dos corcéis encantados, que com armas encantadas completam o equipamento do cavaleiro e permitem operar prodígios." (124)

"Num plano profundo, a sucessão de chefes que morrem ou se afastam, mas em todo o caso cedem lugar, poderia ser comparada a uma série de imolações, mediante as quais a energia vai se conservando no grupo até concentrar-se em Riobaldo, herdeiro que encarna significativamente um pouco de cada predecessor." (124)

"Produto do sertão, a força do jagunço paladino depende da força da terra; por sua vez ele é a lei desta terra, e para o ser com eficácia necessita viver uma sequência de atos e padecimentos cuja raiz, de tão funda, escapa à nossa atenção, mergulhando nas relações primordiais do homem com a terra, que deve ser propiciada para viver e dar vida, como nos ritos agrários." (124)

"Estas considerações sobre o poder recíproco da terra e do homem nos levam à ideia de que há em Grande sertão:veredas uma espécie de grande princípio geral de reversibilidade, dando-lhe um caráter (124)
fluido e uma misteriosa eficácia. A ela se prendem as diversas ambiguidades que revistamos, e as que revistaremos daqui por diante." (125)

"A ambiguidade da geografia, que desliza para o espaço lendário; ambiguidade dos tipos sociais, que participam da Cavalaria e do banditismo; ambiguidade afetiva, que faz o narrador oscilar, não apenas entre o amor sagrado de Otacília e o amor profano da encantadora 'miltriz' Nhorinhá, mas entre a face permitida e a face interdita do amor, simbolizada na suprema ambiguidade da mulher-homem que é Diadorim; ambiguidade metafísica, que balança Riobaldo entre Deus e o Diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem."

"Estes diversos planos da ambiguidade compõem um deslizamento entre os pólos, uma fusão de contrários, uma dialética extremamente viva, - que nos suspende entre o ser e o não ser para sugerir formas mais ricas de integração do ser. E todos se exprimem na ambiguidade inicial e final do estilo, que é popular e erudito, arcaico e moderno, claro e escuro, artificial e espontâneo." (125)

"Assim, vemos misturarem-se em todos os níveis o real e o irreal, o aparente e o oculto, o dado e o suposto. A soberania do romancista, colocado na sua posição-chave, a partir da qual são possíveis todos os desenvolvimentos virtuais, nos faz passar livremente duma esfera à outra. A coerência do livro vem da reunião de ambas, fundindo o homem e a terra e manifestando o caráter uno, total, do Sertão-enquanto-Mundo." (125)

(continua amanhã, se os deuses forem bons  :-)  )

Obs: Negritos feitos por Marcos Alvito, não estão presentes no texto original; entre colchetes vêm comentários também feitos por Marcos Alvito. Os itálicos ao contrário, pertencem ao próprio texto de Antonio Candido.

Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. (2006), "O homem dos avessos" In: Tese e Antítese, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. pp.111-130.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

(Continuação) Leituras de Rosa - "O homem dos avessos" ("O Sertão e o Mundo") - Antonio Candido 1957 - parte 2

"Diadorim II", xilogravura
de Arlindo Daibert

(Continuação - parte 2)

A terra

Por um lado, "O meio físico tem para ele uma realidade envolvente e bizarra, servindo de quadro à concepção do mundo e de suporte ao universo inventado." É um sertão ao mesmo tempo rude e belo, "de encanto extraordinário" (113).

Mas ao mesmo tempo, não se trata de mera descrição do meio físico: "Aqui, um vazio; ali, uma impossível combinação de lugares; mais longe uma rota misteriosa, nomes irreais. E certos pontos decisivos só parecem existir como invenções. Começamos então a sentir que a flora e a topografia obedecem frequentemente a necessidades da composição; que o deserto é sobretudo projeção da alma, e as galas vegetais simbolizam traços afetivos." (114)

A prova maior disso estaria no papel do São Francisco, que é ao mesmo tempo "acidente físico e realidade mágica, curso d'água e deus fluvial, eixo do sertão." O grande rio divide o mundo em duas partes: "o lado direito e o lado esquerdo, carregados do sentido mágico-simbólico que esta divisão representa para a mentalidade primitiva. O direito é o fasto; nefasto o esquerdo." (114)

Na margem direita, "a topografia parece mais nítida; as relações, mais normais". É o espaço "do grande chefe justiceiro Joca Ramiro", de Zé Bebelo [que lutava pelo fim do jaguncismo], "da vida normal no Curralinho", "da amizade ainda reta (...) por Diadorim". (114)

Já na margem esquerda, "a topografia parece fugidia" e até imaginária, correspondendo aos "fatos estranhos e desencontrados que lá sucedem". É a "Margem da vingança e da dor, do terrível Hermógenes (...) das tentações obscuras; das povoações fantasmais; do pacto com o diabo." (114)

É nesta margem que "se situam, perdidos no mistério, os elementos mais estranhos do livro: o campo de batalha do Tamanduá-tão; as Veredas-Mortas; o liso do Sussuarão, deserto-símbolo; o arraial do Paredão, com 'o diabo na rua, no meio do redemoinho'.  (115)

Todavia, é também na margem esquerda, como compensação, que temos "o amado Urucuia; como flor e esperança de resgate, Otacília, da Fazenda Santa Catarina, nos Buritis Altos". (115)

Esta oscilação está presente por exemplo nos encontros com Diadorim, pois este "é uma experiência reversível que une fasto e nefasto, lícito e ilícito, sendo ele próprio duplo na sua condição".

"Essa heterolateralidade" (...) mostra a coexistência do real e do fantástico, amalgamados na invenção e, as mais das vezes, dificilmente separáveis." (114)

Ele dá dois exemplo disso. O primeiro é dado pelas Veredas-Mortas, onde ele tentara fazer o pacto com o demônio, local que depois ele descobre se chamar Veredas Altas. O outro é o do liso, barreira aparentemente instransponível e infernal, sem água [símbolo da vida]. (114), onde até mesmo Medeiro Vaz fracassa em sua tentativa de cruzá-lo com seus homens, mas que Riobaldo atravessa "com relativa facilidade" (116) [lembra Excalibur]:

'Rasgamos sertão. Só o real. Se passou como se passou, nem refiro que fosse difícil, ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios? Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se econominava.'

Em suma, como mostra esse exemplo: "A variação da paisagem, inóspita e repelente num caso, sofrível no outro, foi devida ao princípio de adesão do mundo físico ao estado moral do homem, que é uma das partes da visão elaborada neste livro:

'(...) sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar.

- Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: - ... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo.'

(continua amanhã, se os deuses forem bons  :-)  )

Obs: Negritos feitos por Marcos Alvito, não estão presentes no texto original; entre colchetes vêm comentários também feitos por Marcos Alvito. Os itálicos ao contrário, pertencem ao próprio texto de Antonio Candido.

Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. (2006), "O homem dos avessos" In: Tese e Antítese, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. pp.111-130.

domingo, 16 de novembro de 2014

Leituras de Rosa - "O homem dos avessos" ("O Sertão e o Mundo") - Antonio Candido 1957

"Diadorim II", xilogravura de Arlindo Daibert
Um dos primeiros e ainda hoje mais notáveis estudos publicados sobre Grande Sertão: Veredas, foi o artigo de Antonio Candido, "O Sertão e o Mundo", de 1957. Saiu em número especial da revista Diálogo e depois foi republicado em Tese e Antítese com o novo título de "O homem dos avessos".

Logo de saída, previne o leitor de que o que virá é apenas uma das interpretações possíveis;

"Na extraordinária obra-prima Grande sertão: veredas há de tudo para quem souber ler" (...) Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício" (111)

Mas não sem deixar de salientar um traço fundamental de Rosa: "a absoluta confiança na liberdade de inventar", chegando a caracterizar o livro como "navegação no mar alto, jorro de imaginação criadora na linguagem, na composição, no enredo, na psicologia". (111)

Guimarães Rosa teria sido capaz de "elaborar um universo autônomo, composto de realidades expressionais e humanas que se articulam em relações originais e harmoniosas, superando por milagre o poderoso rastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma". Em suma, baseando-se na "observação da vida sertaneja" para transformá-la "em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, - para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o Mundo." (112)

A partir dessa introdução, Candido aponta "três elementos estruturais que apóiam a composição: a terra, o homem, a luta" (112)

(continua amanhã, se os deuses forem bons :-)  )

Obs: Negritos feitos por Marcos Alvito, não estão presentes no texto original; entre colchetes vêm comentários também feitos por Marcos Alvito. Os itálicos ao contrário, pertencem ao próprio texto de Antonio Candido.

Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. (2006), "O homem dos avessos" In: Tese e Antítese, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. pp.111-130.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Pedacinho de Rosa - Amizade

Caricatura de João Guimarães Rosa por Baptistão
"Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim, é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e receber, e saírem por este mundo; barganhando ajudas, ainda que sendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou - amigo - é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é." 

(Grande Sertão: Veredas)

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Rumo aos altos prazeres

"Sertão é dentro da gente", xilogravura de
Arlindo Daibert

Este blog nasceu hoje de uma amizade e de uma paixão compartilhada. Marcos Alvito e Gustavo Fialho, amigos que a vida fez, assim se tornaram por conta do amor comum pela obra de Guimarães Rosa. Daí começaram as conversas regadas a café, as trocas de textos e livros, as reuniões de leitura proseando Rosa reunindo também outros amigos e a primeira viagem para o sertão da terra encantada de Minas.

Pensamos em fazer um bloguinho, bem simples, só pra facilitar a nossa vida, arquivando aqui pistas pra seguir nas veredas do Rosa, que nos dão altos prazeres e nosso quinhão de boa alegria enquanto estamos debaixo do céu e acima da terra, pra citar o sábio Zeca Pagodinho.

Logo de saída, como deve ser, um presente divino, embora preparado por mão humana, uma bela fortuna crítica da obra de Rosa, bastante atualizada e contendo não só livros e artigos mas até mesmo filmes: http://www.elfikurten.com.br/2011/01/guimaraes-rosa-fortuna-critica-i.html