"Redemoinho", xilogravura de Arlindo Daibert |
Temos, por exemplo: "A intercalação de episódios convergentes com a ação principal, mas de função adjuntiva, podendo adquirir independência formal, aparece frequentemente (13);
desde logo, podem ser enumerados o do Aleixo, com os três filhos cegos, o do Joé Cazuzo, com visões sobrenaturais em pleno combate, o de Andalécio e Antonio Dó atacando o porto de São Francisco." (14)
Estes episódios entremeando os contos - característica de um estilo épico - aparecem em grande número em contos e novelas de Guimarães Rosa. No caso do GSV, o episódio de Maria Mutema "é um verdadeiro conto incrustado no corpo do romance, como processo de reter o desenvolvimento da ação, prolongando o interesse da narrativa." (14)
O julgamento de Zé Bebelo é para Proença "o ponto nodal"; a morte de Joca Ramiro "desata novamente a ação", "que, daí por diante, se desencadeia, em plano diferente, até a morte de Diadorim". Proença crê que temos aqui como tema, "material de filiação popular" (14)
O argumento central é que a própria figura do "cangaceiro", "como herói de poesia narrativa sertaneja, é assunto pacífico entre folcloristas, e o paralelismo com as epopéias medievais e seu sucedâneo - o romance de cavalaria, já tem sido apontado" (15)
Desta forma, Riobaldo seria "uma estilização da imagem convencional que o povo estabeleceu para seus heróis", com uma trajetória de menino sem pai, "tímido, mas com vários embriões de virtudes heróicas, que se irão acentuando, até elevá-lo, meio inconscientemente, a chefe indiscutido" (15)
Ele é uma espécie de "cangaceiro cortês", que não consegue cometer barbaridades, "não tolera a deslealdade e os desleais lhe são inimigos de morte, os 'judas'." (15)
E mais: "Muito folcloricamente, procura o (15)
equilíbrio social e tem rasgos de bandido romântico, favorecendo com esmola grande a mulher que dá à luz no casebre miserável." (16)
Diadorim lhe propõe cumprir algo típico desses romances de cavalaria: o voto de castidade (16)
"Os chefes sertanejos guardam traços medievais", desde a imponente e respeitável figura de Medeiro Vaz, 'duma raça de homem que o senhor não mais não vê' (16), passando por Joca Ramiro, que talvez se inspire em Rolando, "montado em cavalo branco feito um São Jorge" (17) e chegando a Zé Bebelo, que, "prisioneiro, submetido a julgamento, arenga como guerreiro medieval: '... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero julgamento, esta bizarria...' " (17). No fim do seu discurso, usa até uma expressão medieval: 'Mas, homem sou, de altas cortezias'. (18)
O julgamento seria "um recorte de romance de cavalaria transposto para o sertão", no qual "A grandiloquência das palavras realça a nobreza da ação" (18)
Um exemplo estaria no verdadeiro diálogo de barões entre Joca Ramiro e Zé Bebelo:
'- O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra.' (18)
Outro elemento caracteristicamente épico: "O sentimento de honra - o orgulho da luta sem outro galardão além da glória - inflama os jagunços do Grande Sertão." (19) Riobaldo, no mencionado julgamento, chega a dizer, coisa que Sô Candelário também faz, que a história "há de guardar o nome dos valentes, a fama de suas façanhas" (19)
Joca Ramiro é morto à traição como os heróis lendários e seus assassinos se degradam como "Don Galvan, cavaleiro de má andança, réu de covardia e deslealdade." (20)
Riobaldo anuncia aos companheiros de outro bando a morte de Joca Ramiro com cena e palavras medievais. (20)
Medeiro Vaz não consegue atravessar o Liso do Sussuarão da mesma forma que Percival ou Lancelote, "apesar de todos os preparativos", mas Riobaldo, assim como Don Galaaz, "realiza, protegido pelo acaso, sem mesmo se haver preocupado com provisões." (20)
As mudanças de nome, Riobaldo, depois jagunço Tatarana, depois chefe Urutu-Branco, são características dos cavaleiros corteses. (20)
Até a idade de ouro, de Ovídio, presente nos romances de cavalaria, comparece, com as enxadas que algum dia sairão sozinhas a capinar a roça. (20-21)
E os guerreiros são enumerados em véspera de batalha como nos romances de cavalaria (21):
'Para que relembrar, divulgar dum e dum, dar resenhas? Do Dimas Dôido - que xingava nomes até a galho de árvore que em cara dele espanejasse, ou até algum mosquito chupador. Do Diodôlfo (...)' (21)
"O encontro com o povo dos catrumanos, na região inóspita, é episódio de frequente correspondência em romances de cavalaria; lembremos a Ilha Encantada onde esteve Clarimundo" (22)
A vingança contra os 'judas' é como "uma demanda medieval, a luta de Deus contra o Diabo" (22)
"os cavalos passam a adivinhar que Riobaldo, agora, é homem sobrenatural, conserva o cheiro de quem o diabo farejou: aquele gateado, formoso, de imponência e brio, que se abaixa diante dele, depois de quase bolear com o dono, era o diabo e, por isso, gateado. Empina violentamente, mas Riobaldo lhe diz o nome: Barzabu. E porque havia adquirido ascendência sobre o diabo, porque deixára de temê-lo, altas horas na encruzilhada, o cavalo se submete, aceita que o dono lhe mude o nome para Siruiz, manso, doce nome do poeta da neblina." (23)
"Ao dono das terras ele dá como gage de aliaça, não 'correntias moedas de ouro do rei, mas costumeiras prendas de louvor aos santos'" (23)
"A convocação dos catrumanos para seguirem com os jagunços tem um sentido de grandeza legendária." (23)
"Na comitiva, o cego e o menino, inúteis e, por isso mesmo, dão a nota de grandeza e majestade, viajando a par com ele; Diadorim é o cavaleiro gentil" (24)
"Antes, porém, de empreender a demanda dos judas, é preciso voltar aos campos do Urucúia, receber os eflúvios da terra, encher os olhos da contemplação dos buritis, os ouvidos, com o berro dos bois. Quem vai vencer ou morrer, deve dar adeus às coisas queridas, à terra-mãe." (24)
"Em sonhos corteses, pensa em Otacília", 'montada num bom cavalo corcel', com a noiva mostrando 'a grandeza real dela' (24)
A vingança contra os judas é um bem que se faz à Humanidade: 'porque eu ia livrar o mundo do Hermógenes' (24)
"O combate a cavalo, no Tamanduã-tão, é uma verdadeira batalha campal (...) Ali, ele próprio se benze. Era o enviado de Deus, não era pactário." (25)
"Vez por outra, conscientemente ou não, o romancista deixa entrever em certas expressões as raízes antigas de sua efabulação: Joca Ramiro é 'um imperador em três alturas' um chefe valente é par-de-França, Riobaldo lê o Senclér das Ilhas e se compara a Guy de Bourgogne." (25)
"Espalham-se por todo o livro as deixas para que se descubra o sexo de Diadorim" (26)
[i] traços físicos como mãos muito brancas, braços bem feitos, cintura fina, passo curto, pestanas compridas, boca bem feita, nariz fino e por aí vai... (26)
[ii] Diadorim usa uma tesoura de prata e navalha, que guarda em capanga decorada; ele corta os cabelos de Riobaldo; (27)
[iii] Diadorim faz segredo do próprio corpo se banhando de madrugada sozinho, desaparece de forma inexplicável, nunca tira o jaleco... (27)
[iv] tem um pudor feminino, pedindo a Riobaldo que faça suas necessidades longe dele (27)
[v] apesar de ser o guerreiro mais valente, com coragem que nunca vacila, tem reações bastante femininas: chora na chegada de Joca Ramiro, alegre com a vitória praticamente dança e se abraça impulsivamente com Riobaldo quando do julgamento de Zé Bebelo; quando morre o pai desmaia, soluça e tem quase um uivo de dor, fugindo para chorar escondido, deitado na relva; "Na Guararavacã, agrada as crianças" (27) E é ele que lava a roupa dos dois. Fica deslumbrado com uma pedra preciosa (Arassuaí) e no meio dos jagunços é o 'pé de salão'; quando sozinho gostava de cantarolar mas não fazia isto na frente dos outros, para não se trair pela voz (28)
[vi] Às vezes quase se revela diretamente, como quando tem tanto ciúme de Otacília que ameaça apunhalar Riobaldo ou quando diz a este que depois da vingança irá lhe contar um segredo. (28)
[vii] Há a sua reação ambígua diante do amor de Riobaldo, nunca deixando transparecer o que pensava ou sentia (28-9)
[viii] E há deixas, indiretas como o sonho em que Diadorim passa em baixo de um arco-íris ou quando Diadorim chama entusiasmado uma flor de cavalheiro da sala mas é corrigido por Alaripe, que diz que na sua terra o nome dela é dona-joana (29)
[ix] E diretas: "Ao narrar o encontro de Diadorim e Otacília, de recíproca hostilidade instintiva, o autor revela tudo, para seu próprio divertimento; quem até agora não descobriu, não o fará mais, até que a morte conte o grande segredo." (29)
(Continua, se os deuses forem bons :-) )
Bibliografia:
PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.