terça-feira, 24 de maio de 2016

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 8 - Capítulo 7 - O letrado - a vida passada a limpo

Capítulo 7 - O letrado: a vida passada a limpo

'O senhor saiba: em toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo...'

"Narrador-personagem, Riobaldo examina as linhas de seu destino duplo de jagunço-letrado." (77)

Ao morrer a mãe e ser levado para a casa do 'padrinho' Selorico Mendes é que Riobaldo entra em contato com a "mitologia do cangaço": 'Altas artes de jagunços - isso ele amava constante - histórias'. (78)

E é o padrinho que o prepara para um destino duplo: armas e letras. Faz com que ele aprenda a atirar, a manejar porrete e faca. E também tem a ideia de mandar Riobaldo à escola. Aqui, as duas ordens se entrelaçam pois o padrinho quer que ele aprenda a ler para, entre outras coisas, inteirar-se da prova documental de que Selorico Mendes tinha relação com o famoso jagunço Neco: 'E meu padrinho me mostrou um papel, com escrita de Neco - era recibo de seis ancorotes com pólvora (...) e a assinatura rezava assim: Manoel Tavares de Sá. Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola' (78)

Riobaldo se dá bem na escola, melhor até do que na vida prática (com exceção das artes guerreiras, onde também brilha), demonstrando vocação para professor e se tornando assistente de Mestre Lucas. (78-9)

Se fora o interesse do 'padrinho' no cangaço que levara Riobaldo a ter contato com as letras, agora o destino se inverte: "é por ser um letrado que Riobaldo entra para o cangaço", indo ser professor de Zé Bebelo depois de fugir da casa de Selorico Mendes. Zé Bebelo irá chamá-lo para sempre de professor, embora rapidamente aprenda tudo que Riobaldo tem a lhe ensinar. (79)

Mais uma volta do destino: na qualidade de secretário de Zé Bebelo, Riobaldo não participa mas assiste a uma batalha e foge para "não se ajagunçar": 'Em certo ponto do caminho, eu resolvi melhor minha vida. Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade'. (79)

Em mais uma ironia trágica, ao fugir é que vai acabar reencontrando o Menino e acabando por entrar no bando de Joca Ramiro, tornando-se de vez jagunço, embora nunca deixando de ser letrado. (79)

"Se um texto foi ponto de partida para a educação formal de Riobaldo, a qual por sua vez foi responsável por sua entrada no mundo dos jagunços, outro texto vai ser decisivo para sua promoção de jagunço a chefe. (...) Devido à sua condição privilegiada de letrado, ele é o único homem do bando a conhecer o conteúdo das cartas que Zé Bebelo envia às autoridades, quando cercado; e Riobaldo suspeita de um conluio de Zé Bebelo" (79)

É somente neste contexto de dúvida em relação à lealdade de Zé Bebelo que surge nele a ideia de liderar o bando. (80)

"Fica sempre, em Riobaldo, a nostalgia das letras. Em suas andanças de jagunço, encontra vagar e interesse para ler um livro. 'Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuía um livro, capeado em couro, que se chamava Senclér das Ilhas e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance, porque ante eu só tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinárias.' (80)

"Riobaldo exibe seus títulos de letrado logo no início da narração, para qualificar-se perante seu ouvinte: 'Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive Mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia - que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado. Na fazenda O Limãozinho, de um meu amigo Vito Soziano, se assina desse almanaque grosso, de logogrifos e charadas e outras divididas matérias, todo ano vem. Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos - missionário esperto engambelando os índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto muito de moral.' (80)

"É cônscio da bifurcação de seu destino entre as armas e as letras: 'Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido'. Com extraordinária acuidade, Riobaldo localiza o destino letrado possível para um habitante do sertão, que é o do padre e não aquele em que pensaria uma mente urbana - escritor, cientista, poeta etc. Ao mesmo tempo, esgota os dois caminhos possíveis e as duas metas históricas que têm sido as saídas da plebe rural brasileira: a religião e a violência." (81)

O primeiro encontro de Riobaldo com um bando de jagunços, ainda na fazenda do padrinho, é decisivo em vários sentidos. Primeiro pelo encontro com os "seres mitológicos das fabulações do seu pai". Mas também pela descoberta da poesia a partir da toada cantada por Siruiz, um dos membros do bando. Isto "revela a Riobaldo que é possível criar com palavras": 'O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha ideia. Aire, me adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela qualidade. (...) Pois foi que eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas.' (81)

"Em outras ocasiões, Riobaldo eventualmente pratica a poesia, sempre seguindo o modelo da canção de Siruiz." (81)
"Aqueles primeiros versos de sua autoria, ele mesmo os esqueceu; mas, mais tarde, faz outros - e cita-os na narração - com o propósito de dar continuidade à canção de Siruiz. (...) Muito depois, Riobaldo, já chefe de bando, compõe ainda mais outros versos, que o bando todo canta. Às voltas com seus problemas e preocupações, já pactário, recorre naturalmente à criação literária para expressar-se: 'Mas eu tinha conseguido encher em mim causas enormes. Dispor do rôr daquilo eu não conciliava, conforme perseguia, custoso, vermelho meu. Somente quis, nem podia dizer aos outros o que queria, somente então uns versos dei, que se puxaram, os meus, seguintes.'" (82)

"A tarefa presente de Riobaldo, narrador e personagem, é transformar seu passado em texto. Enquanto o passado era presente se fazendo, no caos do cotidiano, Riobaldo não teve tempo para refletir o suficiente - embora fosse um indagador - e compreender. 'De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gosto, de especular ideia.' " (82)

"O narrador, ao mesmo tempo que expõe seus títulos, jacta-se também de sua boa cabeça, outro componente da condição de letrado. 'Eu quase nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!' (82)

E também afirma ter outro instrumento do letrado, a memória: 'Assim é que digo: eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice.' E mais: 'Mire veja: sabe por que é (82)
que eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa memória. A luzinha dos santos arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu, lembro de tudo' (83)

"Justifica-se perante o interlocutor por ter pensado menos quando era jovem e por pensar demais, agora que é velho. 'Também, eu desse de pensar em vago em tanto, perdia minha mão-de-homem para o manejo quente, no meio de todos. Mas, hoje, que raciocinei, e penso a eito, nem por isso não dou por baixa minha competência, num fogo-e-ferro'  Na juventude, não era dono de seu destino nem compreendia seu viver disponível: 'Por que era eu que estava procedendo à toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho'. Mas, hoje, valoriza o exercício da inteligência. 'Por tudo, réis-coado, fico pensando. Gosto. Melhor, para a ideia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo, dentro dele.' (83)

"Aprecia o intelocutor inteligente e preparado, que está à altura daquilo que ele conta. 'Se vê que o senhor sabe muito, em ideia firme, além de ter carta de doutor. (...) Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir.' (...) Alguns de seus repetidos elogios à capacitação do interlocutor têm muito de manha rústica, que exagera para por no seu devido lugar, para reduzir a proporções mais razoáveis. Por isso, seus louvores se entremeiam de reivindicações quanto à posse e intransmissibilidade da experiência; a experiência é dele, não do interlocutor. Sobre o funesto episódio da travessia frustrada do Liso do Sussuarão, diz: 'Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido.' Sobre os dias passados nas Veredas Mortas, a preparar-se para o pacto (83)
com o Diabo, diz: 'E o senhor não esteve lá. O senhor não escutou em cada anoitecer, a lugúgem do canto da mãe-da-lua. O senhor não pode estabelecer em sua ideia a minha tristeza quinhoã'" (84)

"Essas observações todas relacionam-se com a transformação da vida - caótica, desnorteante, desconexa - em texto compreensível. (...) Por que é que Riobaldo quer transformar sua vida em texto? Para poder compreendê-la, porque 'a vida não é entendível'." (84)

"O auxílio do interlocutor é seguidamente solicitado. Às vezes, ele tem o papel de um alter ego, de um desconhecido neutro e não envolvido nas coisas, a quem se podem dizer os maiores segredos. 'Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas, Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo, mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo.'" (84) [M.A. Isso, de certa forma, lembra o mecanismo da psicanálise]

"O interlocutor, parceiro equipado para a construção de um texto decifrável, que se decifra à medida que se constrói, é companheiro na tarefa: 'Eu sei que isto que eu estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for de jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que (84)
empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.' (85) [M.A. Não concordo com Walnice Nogueira Galvão na interpretação deste trecho. Aqui há uma ironia fortíssima, pois de que vale a 'instrução' para 'decifrar as coisas que são importantes' ?]

"Riobaldo acentua que está narrando com propósito: 'Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.' E o propósito é o entendimento da experiência através do texto construído como cometimento de ambos: 'Ao que? Não me dê, dês. Mais hoje, mais amanhã, quer ver que o senhor põe uma resposta. Assim, o senhor já me compraz. Agora, pelo jeito de ficar calado alto, eu vejo que o senhor me divulga.'" (85) [M.A., Novamente, discordo, acho que há aqui uma ironia latente: o silêncio do intelocutor muito bem pode ser fruto de alguém que não sabe o que dizer]

"O concurso de outra cabeça, de outra experiência de vida, e sobretudo de uma experiência de letrado maior, é aquilo com que conta Riobaldo para a elaboração de um texto finalmente significante: 'Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas o principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode saber que o senhor saiba'" (85) [M.A. Aqui Riobaldo parece estar distinguindo dois níveis: o primeiro, da experiência vivida, só ele pode alcançar; mas quando a experiência é narrada, abre-se a porta a interpretações acerca do significado da mesma; é aqui que outra pessoa poderia contribuir]

"Significante, isto é, que ganhe significação para ele mesmo, para que ele compreenda, para que ele adquira confiança em seus próprios juízos sobre si mesmo. É praticamente um julgamento que ele pretende, talvez mesmo uma absolvição. (...) Embora não seja talvez essa sua intenção primeira ao iniciar a narração, passa a ser, quando ela já vai bem adiantada; e passa a ser, declaradamente: 'Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir conselho.'" (85) [M.A. Aqui, ele confessa que mesmo a narração do vivido é uma seleção, já comporta uma interpretação na forma de uma questão: 'armar o ponto de um fato']

"E quando está encerrando a narração, menciona novamente essa subordinação ao (85)
interlocutor: 'No que eu narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade'" (86) [M.A. O mais importante é que a verdade não está no conteúdo factual da narrativa e sim no seu significado. Discordo que o doutor seja considerado um privilegiado para alcançar a verdade, ele na verdade convida o leitor a buscar a sua própria interpretação.]

"O narrar - fazer um texto com o concurso do interlocutor letrado - é objeto de reflexões frequentes por parte de Riobaldo. Tem-se por bom narrador, capaz de avaliar a exata importância de cada passo que relata. Em seu critério, uma boa narração deve dar conta do peso diverso que cada passagem da vida tem; assim, o que importa narrar com pormenor e detidamente é aquilo que foi relevante como experiência. Pouco importa a extensão no tempo ou a multiplicação das peripécias; nem mesmo a linearidade de sequência deve ser respeitada. Em suma: o que determina o texto é a vida, mas o que explica a vida é o texto. 'Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.'" (86)

"Outra coisa é a dificuldade de avaliar o passado e a facilidade de mentir, involuntariamente embora, no sopesar de cada acidente. 'Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas, de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.' " (86)

"Compare-se o leitmotiv da narração - 'Viver é muito perigoso' - com este 'Contar é muito, muito dificultoso': frases de sintaxe paralela, este paralelismo ilumina-as mutuamente. O existir e o narrar dão-se ambos como empresas árduas, que a cada instante podem assumir as formas do falso, desencaminhando a prática do sujeito." (86)

"Ainda, o narrar legítimo, que é o que apanha apenas o essencial dos acontecimentos, que quer dar coerência à vida, demanda esforço custoso: 'O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enviar a ideia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é (86)
fácil. Fé que não é.'" (87)

"Mas o narrador se dedica com tenacidade a esse esforço e faz o possível para atingir o seu objetivo: 'Porque não narrei nada à-toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo.'" (87)

"Outras vezes, procura sugerir com palavras aquilo que está para além das palavras, reconhecendo suas dificuldades. 'Os ruins dias, o castigo do tempo todo ficado, em que falhamos na Coruja, conto malmente. A qualquer narração dessas depõe em falso, porque o extenso sofrido se escapole da memória.'" (87)

"Riobaldo mostra com insistência a faceirice do bom narrador, que, não contente com bem narrar, também teoriza a respeito: 'Sobre assim, aí corria no meio dos nossos um conchavo de animação, fato que ao senhor retardei: devido que mesmo um contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez.' Ou: 'As partes, que se deram ou não se deram, ali na Barbaranha, eu aplico, não por vêzo meu de dar delongas e empalhar o tempo maior do senhor como meu ouvinte. Mas só porque o compadre meu Quelemém deduziu que os fatos daquela era faziam significado de muita importância em minha vida verdadeira (...). Aí, narro, o senhor me releve e me suponha'. Ou ainda: ' Digo franco: feio o acontecido, feio o narrado. Sei. Por via disso mesmo resumo; não gloso. No fim o senhor me completa.'" (87)

"E sua destreza maior, que é negacear a respeito do sexo de Diadorim, nomeando-o sempre como homem ao mesmo tempo em que semeia incontáveis pistas de sua feminilidade: a revelação para o interlocutor, e para o leitor igualmente, só eclode no final da narração, quando o narrador assim o deseja, para isso chamando a atenção do seu ouvinte" (...) (87)
'Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita' (88)

"São várias também as referências de passagem à narração que se está processando. Ora aparecem na forma de um comentário que resume, a modo de escusas, uma série de observações filosóficas de Riobaldo, marginália ao anedótico: 'Se estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este'; ou ainda: 'Com o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto'; e ainda: 'Desculpe me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo'." (88)

"Ora tais referências assumem o papel de transição para outro episódio: 'Ou conto mal? Reconto'. Por vezes, o narrador dá-lhes a função de permitir um ligeiro retrocesso: 'Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. Pois ia me esquecendo: o Vupes!' Também, para se justificar e atribuir a dificuldade à matéria, diz: 'Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de por denúncia'. Outras vezes, utiliza-se destas reflexões para chamar a atenção do interlocutor: 'Eu conto. O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois'; ou: 'O senhor não é bom entendedor? Conto'. Tampouco se furta a assinalar que não narra levianamente; assim, após ter contado alguns casos seus com mulheres, observa: 'Mas o senhor releve eu estar glosando assim a seco essas coisas de se calar no preceito devido. Agora: tudo o que eu conto, é porque acho sério preciso'." (88)

"E é assim, por essas vias todas, que o narrar vai-se também tornando um dos objetos que compõem a matéria da narração." (88)

"Como bom letrado, ainda que letrado frustrado, Riobaldo erige o texto em espaço privilegiado, lugar da verdade, da clareza, da coerência, de tudo aquilo a que a razão aspira enquanto se debate na desordem do existir." (88)

"Não é gratuitamente que faz esta afirmação: 'Em desde aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça (...)'. A vida, portanto, é como se fosse um mau texto: um bom texto deve ter pés e cabeça." (88)

"O maior louvor que pode fazer a seu ouvinte é atribuir-lhe a qualidade de ser 'fiel como papel', qualidade de pessoa e de caráter, e não elogio a seu preparo intelectual: 'Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda'."  (89)

"Que o viver é caótico, confuso, desordenado, o narrador menciona constantemente. Para impor uma ordenação, não à vida, porque esta já passou, mas ao que dela restou da memória, é preciso refletir sobre ela e torná-la texto. 'A vida não demora em nada', é o que diz Riobaldo. 'Mesmo o que eu estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido.' (89)

"O texto é aferidor da vida, e não o contrário. De seu encontro definitivo com Diadorim, muitos anos após o encontro com o Menino, diz o narrador: 'Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê'. É do texto que promanam até mesmo diretrizes para a ação; pois foi melhor que dois inimigos seus tivessem logo morrido em batalha, já que, se vivessem, estariam aprontando traições e tocaias. 'Nas estórias, nos livros, não é desse jeito? A ver, em surpresas constantes, e peripécias, para se contar, é capaz que ficasse muito e mais engraçado. Mas, qual, quando é a gente que está vivendo, no costumeiro real, esses floreados não servem: o melhor mesmo, completo, é o inimigo traiçoeiro terminar logo, bem alvejado, antes que alguma tramóia perfaça!'. Ao contar a arrancada do bando de Zé Bebelo, cerca de mil combatentes, coisa impressionante de se ver, diz: 'o senhor mesmo nunca viu coisa assim, só em romance descrito'." (89)

"É também o texto que serve de argumento para salvar a vida de Zé Bebelo, no julgamento. Naturalmente, é Riobaldo quem primeiro se lembra de lançar mão desse argumento, dentre tantos que estão sendo postos em jogo. - '... A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela todo mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas...'. O argumento é logo retomado e desenvolvido por Sô Candelário, igualmente advogando em favor de Zé Bebelo: - '... Seja a 
fama (89)
de glória... Todo mundo vai falar nisso, por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas partes e lugares. Hão de botar verso em feira, assunto de sair até divulgado em jornal de cidade...'" (90)

"Mais para o fim da narração, quando o texto pregresso já está de grande extensão, Riobaldo passa a aludir francamente ao fato de ambos - narrador e interlocutor - estarem fazendo um registro escrito e a medir a importância do que está relatando em função do número de páginas que devem ser redigidas. (...) Assim, diz a certa altura: 'A vida é um vago variado. O senhor escreva no caderno: sete páginas...' A última batalha, na qual Diadorim morre, vale este conselho: 'Campos do Tamanduá-tão - o senhor aí escreva: vinte páginas...' Até recomenda que se faça um mapa do Tamanduá-tão, descrevendo como seria. (90)

"Ao contar o arremate da batalha, quando Riobaldo trespassa, ao ver sem poder intervir o duelo a faca entre Diadorim e Hermógenes, novamente é tomado pelo sentimento da impenetrabilidade da vida e de sua natureza distinta do texto: 'Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor enche uma caderneta...'" (90)

"O fetiche do texto se mostra em sua maior nitidez quando o narrador se detém na descrição de Diadorim (90)
morto: 'Não escrevo, não falo! - para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo!' Então o texto assume o nível do real e empurra o real para fora, de modo tal que passa a ser real aquilo que o texto instaura. Mas o narrador fala, e o interlocutor escreve, e assim fica sendo." (91)

"E é numa sequência verbal que se encontra apurado, concentrado, resumido, o cerne mesmo da experiência de Riobaldo-jagunço. '(...) o diabo, na rua, no meio do redemunho... Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas palavras, que o senhor nunca deve de renovar.' Ele mesmo já tinha construído para si esse pequeno texto-súmula, que escapara de seus lábios logo no início da narração seguido pela recusa de explicá-lo e que só vai encontrar significado pleno no desfecho da história." (91)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.