segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 2 - Capítulo 1 - A lei e a lei do mais forte

Capítulo 1: A lei e a lei do mais forte

"Aparentemente, o jagunço não é um criminoso vulgar. As noções de honra e vingança, bem como o cunho coletivo de sua atuação, estão inextrincavelmente ligados à sua figura. O jagunço não é um assassino: ele é um soldado, numa guerra; o jagunço não mata: ele guerreia; o jagunço não rouba: ele saqueia e pilha. 'Crime, que sei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado ... não cumprir a palavra...', diz o grande chefe de jagunços Sô Candelário." (18)

"A tradição atribui lances cavalheirescos ao jagunço, relatando como reconhece e premia a valentia de um adversário, como respeita mulheres e velhos, como tira dos ricos para dar aos pobres. Em ocasiões amenas, assim se porta o bando de Riobaldo." (...) "Mas os relatos históricos de sadismo, torturas requintadas e crueldade sem limites também são numerosos; Riobaldo mata, estupra, incendeia, destrói. E conta de um jagunço aposentado, velho e doente, que dizia: 'Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, para uma boa esfola, com faca cega... Mas, primeiro, castrar...'" (18)

"É possível, e fácil, ver no jagunço uma força do mal, um delinquente aquém dos requisitos da humanidade. Também é possível, e sedutor, ver nele um herói, um revolucionário, um Robin Hood caboclo. O problema é que essas duas visões são contraditórias e erigem-se em impasse." (18)

Euclides da Cunha já havia se defrontado com este problema do sertanejo e oscilado entre a admiração pelo tipo humano geral (18)
 ('antes de tudo, um forte') e os sertanejos concretos, em que "essa admiração aparece mesclada de repulsa". (19)

É assim que acaba por recorrer à ambiguidade para descrever Antônio Conselheiro: 'Parou aí, indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados.'" (19)

"O exercício privado e organizado da violência é, ao longo da história brasileira, uma instituição e uma exceção. 'Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potentes chefias. A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador - todos donos de agregados valentes, turmas de cabras no trabuco e na carabina escopetada!' " (21)

"É tradição brasileira secular a presença de uma força armada a serviço de um proprietário rural, grupo de função defensiva e ofensiva, presente dentro da propriedade, para garantir limites, mas igualmente importante por seu desempenho em eleições, seja pelo número de votos que representa, seja pelos votos que pode conseguir por intimidação ou mediante fraude. O braço armado serve para prevenir conflitos e para resolvê-los; a violência é uma prática rotineira, orientando o comportamento dos seres humanos em todos os níveis: 'O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!' " (21)

Oliveira Vianna chegou a agrupar uma série de fenômenos com o rótulo de instituições do nosso direito público costumeiro: (21)
"a solidariedade da família senhorial, o banditismo coletivo, o fanatismo religioso, o partido do coronel. Os usos e costumes decorrentes destas instituições cobrem gama variada: a vingança familiar e o nepotismo, os resgates de cidades ocupadas, as seratas e sebaças - nome genérico para saque e depredação, - o assassínio de adversários políticos, a fraude eleitoral, a corrupção das autoridades locais, etc." (22)

Haveria também uma tradição a nível do indivíduo, ainda segundo Oliveira Vianna (22):
'um sistema puramente costumeiro de motivações e atitudes e determinando, por fim, a conduta real, efetiva, dos cidadãos. Conduta, porém, sempre orientada num sentido diferente, e, às vezes, em inteira desconformidade com aqueles padrões teóricos das elites nas suas esplendorosas Cartas Constituicionais.'  Exemplos disso, embora casos extremos, seria o comportamento de bandoleiros famosos como o próprio Lampião, de acordo com o comportamento ratificado pela ética costumeira, motivado pela vingança e pela honra. (23)

Tudo isto faz parte de um "sistema global", "um regime autoritário de dominação, ao poder que emana de cima, do chefe ou senhor", em que "a massa da população, a ele submetida, não conheceu qualquer forma de organização que lhe fosse própria e defendesse seus interesses" A razão para isso era a marginalidade social e produtiva dos moradores subordinados ao senhor de engenho ou da fazenda, em que o núcleo produtivo repousava na população escrava (23)

"Essas massas subordinadas ao dono da terra são por ele arregimentadas, seja para defesa da propriedade, seja para objetivos eleitorais; é assim que se vêm a constituir as unidades mínimas de poder no país. Dessas unidades e das alianças entre os senhores que as lideram se originam-se os partidos municipais, estaduais e nacionais." (24)

"O fenômeno do chamado banditismo aparece assim inserido no cerne mesmo da organização sócio-econômico-política. Não como um acidente ou uma exceção, mas em sua necessidade histórica, da qual decorrem outras práticas costumeiras e tipos sociais" como o capanga ou cabra, o matador pago e o cangaceiro com suas instituições, bem como a imunidade policial do feudo e o dever de obediência e fidelidade do morador ao senhor, ao lado da correspondente proteção e assistência. (aqui novamente ela está se baseando em Oliveira Vianna) (24)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 3 - Capítulo 2 - O sertão e o gado

Capítulo 2: O sertão e o gado

"Dá-se o nome de sertão a uma vasta e indefinida área do interior do Brasil, que abrange boa parte dos Estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Goiás e Mato Grosso. É o núcleo central do país. Sua continuidade é dada mais pela forma econômica predominante, que é a pecuária extensiva, do que pelas características físicas, como tipo de solo, clima e vegeta- (25)
ção", que podem variar da caatinga seca bem ao lado de um luxuriante barranco de rio (26)

"É a presença do gado que unifica o sertão. Na caatinga ária e pedregosa como nos campos, nos cerrados, nas virentes veredas; por entre as pequenas roças de milho, feijão, arroz ou cana, como por entre as ramas de melancia ou jerimum; junto às culturas de vazante como às plantações de algodão e amendoim; - lá está o gado, nas planícies como nas serras, no descampado como na (26)
mata. As reses pintalgam qualquer tom da paisagem sertajeja, desde a sépia na caatinga no tempo das secas até o verde vivo das roças novas no tempo das águas. " (27)

"O boi é presença marcante no Grande Sertão: Veredas. É o mundo da pecuária extensiva que ali está representado, como substrato material da existência; por isso, raramente em primeiro plano, mas formando a continuidade do espaço e fechando seu horizonte, impregnando a linguagem desde os incidentes narrativos até a imagética. O gado figura praticamente em todas as páginas: da primeira, em que Riobaldo fala do 'bezerro erroso', às últimas, quando reencontra Zé Bebelo que acabara de 'negociar um gado'. Em suas andanças, os jagunços de Guimarães Rosa estão sempre cruzando seus caminhos com os caminhos do gado; encontram vaqueiros, boiadeiros e reses. Os bois que encontram são indícios do que devem esperar das redondezas; se ariscos e bravios, não há gente por perto; se magros, apontam para a penúria do local, se bem nutridos são sinal de fartos recursos materiais." (27)

"A importância fundamental do gado no sertão se inscreve na frequência dos toponímicos no romance: Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita, Lagoa-do-Boi, Curral de Vacas" etc; Riobaldo fala de muitos rios e ribeirões chamados do Boi ou da Vaca; alguns jagunços tem nomes derivados: João Vaqueiro, Marruaz, Carro-de-boi. "Os jagunços cantam a Moda-do-Boi e quando Medeiro Vaz morre Riobaldo se lembra dos versos 'Meu boi preto mocangueiro/ árvore para te apresilhar?' " (27)

Objetos de couro e chifre são frequentes e mostram todo um modo de vida (27),
toda uma 'época do couro'. Objetos significativos como a capanga 'bordada e historienta' que primeiro guarda os utensílios de cuidado pessoal de Diadorim e que depois este presenteia a Riobaldo; o couro que levantaram para resguardar o cadáver de Medeiro Vaz do vento. (28)

Riobaldo usa os bois como termo de comparação com os homens: 'Todo boi, enquanto vivo, pasta' (28)

Bois e boiadas servem para o narrador-personagem construir imagens sobre seus chefes e companheiros, bem como sobre as relações entre eles. "Os jagunços são vistos como rebanho e só os chefes merecem imagens individuais". Sobre os bandos de jagunços, compara seu governo 'com o governo de um bando de bichos - caititu, boi, boiada'; já um chefe como Ricardão é comparado a um 'zebú guzerate' (28)
e Joca Ramiro é comparado a 'um touro preto', enquanto Medeiro Vaz 'morreu em pedra, como o touro sozinho berra feio' (29).

"A presença esparsa e constante do gado solto é a marca do Grande Sertão", onde predomina a criação mais rudimentar e primária. (29)

Historicamente, a criação de gado era subalterna em relação à produção agro-industrial, do açúcar e depois do café, sendo "empurrada para as regiões de solo pouco fértil" (30)

"A lógica do capital determinou que as melhores terras, as litorâneas e férteis, fossem reservadas para a lavoura da cana; a produção do açúcar, baseada no braço escravo, ocupa a posição de empreendimento prioritário que determina a posição de todos os demais. Mas, para garantir que a produção de açúcar fosse possível, era preciso garantir a subsistência de todas as pessoas envolvidas no processo produtivo e em sua comercialização: e essa é a razão da criação de gado", além de também fornecer força-de-trabalho para o engenho. (31)

Por outro lado, havia terra sobrando, mesmo que não aproveitável para o cultivo principal. Há outros fatores que também contribuem para a criação de gado no sertão: o gado é uma mercadoria que transporta a si mesma e a necessidade de capital e de mão de obra é mínima. (31)

"A pecuária foi uma espécie de filha-pobre da economia colonial" (31)

O empresário desprovido de maiores recursos podia iniciar a atividade com um pequeno investimento, erguendo uma casa com cobertura sobretudo de palha, currais e algumas cabeças de gado. (32)

Para os trabalhadores, os poucos necessários, as tarefas não eram consideradas as piores. "Seja para o vaqueiro, que cuida do gado dentro da fazenda, seja para o boiadeiro, que se encarrega da condução das boiadas fora delas, o gado propiciou tarefas não tidas por vis na sociedade colonial: o fato é que a pecuária sertaneja sempre foi trabalho para homens livres." (32)

Além de não ter que trabalhar de sol a sol todos os dias, o trabalhador perambula, dando-lhe "no mínimo, um simulacro físico de liberdade" e, ao mesmo tempo, anda a cavalo, sinal de posição já em Portugal: 'Homem a pé, esses Gerais comem'. (32)

Ainda é importante registrar que o objeto do trabalho é o animal, que muitas vezes acaba por constituir a própria remuneração. Por um lado, este trabalho implica numa 'proximidade física e afetiva' entre homem e animal, em que 'a percepção dos seres naturais é parte integrante da vida, como fonte de informação, como fruir de companhia, como garantia de sobrevivência'. P.ex. "o papel importante que tem o ensino da observação e o deleite da natureza e dos bichos feito por Diadorim" (33)

Por outro lado, o pagamento em gado permite a possibilidade de passar de empregado a dono, exercendo uma enorme atração não somente para os brancos mas também para mulatos, mestiços e pretos forros, esperançosos de um dia se tornarem fazendeiros. (34)


Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 1 - Introdução

Introdução

"Ao fim do conjunto de leituras que fiz, restou como saldo um só problema. Ao Grande Sertão: Veredas se podem aplicar as palavras de Riobaldo, quando diz que (11)
'tudo é e não é': o problema que me ficou nas mãos foi o da ambiguidade; e com ele como operador parti para a minha leitura. Queria descobrir onde radica a ambiguidade e como ela está construída, ou seja, em que níveis da composição literária se detecta essa ambiguidade instauradora." (12)

Faz uma divisão entre a "matéria historicamente dada" e a "matéria imaginária". (12)

"Quanto à matéria historicamente dada, é ela a matéria do sertão, com o homem pobre do meio rural brasileiro, seu estilo de vida, sua maneira de enfrentar o mundo, o sistema de dominação vigente, a violência que o garante. É privilegiado no romance um dos aspectos desse meio, qual seja o cangaço, com o jagunço como figura central. O romance mostra como a condição do sertanejo pobre é radicalmente ambígua, como sua dispensabilidade redunda em dependência, sua liberdade em submissão; isto se passa, todavia, fora de sua consciência. É Riobaldo, narrador-personagem que, tendo uma vida dividida em duas partes - como membro da plebe rural quando menino e quando jagunço, como membro da camada dominante quando jovem e quando velho - tem distância crítica para perceber a ambiguidade da condição do pobre, pacífico ou guerreiro, conforme sirva aos interesses de quem manda." (12)

"A composição do romance repousa na seleção de um monólogo que introduz, ao nível da narração, uma dupla perspectiva, que é a do narrador-personagem. Este se move entre dois polos, narrando o vivido ou vivendo o narrado, conforme seja naquele passo predominantemente narrador ou personagem, sendo sempre ambos. São essenciais para o narrador-personagem duas defi- (12)
nições de si mesmo, que são as duas linhas de seu destino: a que fez dele um letrado irrealizado e a que o tornou um jagunço. Como letrado é que tenta a empreita de transpor seu passado em texto, um passado de jagunço, em que o letrado se frustrou. É assim que o texto se constrói ao mesmo tempo como narração e como reflexão sobre o que é o texto." (13)

"A ambiguidade, princípio organizador deste romance, atravessa todos os seus níveis; tudo se passa como se ora fosse ora não fosse, as coisas às vezes são e às vezes não são. Como, todavia, esses pares não chegam a constituir-se em opostos, antes vivenciando o sujeito alternadamente sem que a tensão entre eles engendre o novo, não se pode falar em contradição mas apenas em ambiguidade. Riobaldo, fonte do texto, no presente da narração reocupou seu lugar na ordem, tão fazendeiro quanto fora seu pai, e com seu próprio grupo de moradores fiéis garantindo suas divisas." (13)

"Se o princípio organizador é a ambiguidade, a estrutura do romance é também definida por um padrão dual recorrente. A coisa dentro da outra, como a batizei, é um padrão que comporta dois elementos de natureza diversa, sendo um o continente e o outro o contéudo. A chave para a descoberta desse padrão é um conto que se encontra no meio do romance, aparentemente como peça solta, mas na verdade como matriz estrutural. Esse conto, que relata o duplo crime de Maria Mutema, estabelece o padrão que se repete em todos os níveis de composição do romance, constituindo sua estrutura: no enredo, nas personagens, nas imagens, na concepção metafísica, nos comentários marginais. Nas linhas mais gerais tem-se o conto no meio do romance, assim como o diálogo dentro do monólogo, a personagem dentro do narrador, o letrado dentro do jagunço, a mulher dentro do homem, o Diabo dentro de Deus." (13)

"De todas as ambiguidades que vincam este livro, não se pode esquecer daquela que é, ao nível da prática, a raiz das demais, e que é a posição do escritor. Posição sumamente ambígua, que se revela na linguagem e através dela. Pois, neste discurso oral que é escrito, sertanejo ao mesmo tempo que erudito, lúcido enquanto apanha o (13)
processo histórico e mitologizante quando o feudaliza, identificado ao homem pobre do sertão e dele distanciado, com uma concepção metafísica veiculada pelo espiritismo mas que tem a sofisticação do budismo e das ideias de Heráclito, que proclama sua fé na vida mas que faz do texto um fetiche, que apreende as tensões da realidade como ambiguidades sem radicalizá-las em contradições, é, afinal, a posição do intelectual brasileiro que se delineia. Preso a seus privilégios mas sendo capaz, por treino, de experimentar imaginariamente outras situações de vida, convive no mundo dos valores, mas é tradicionalmente servidor do Estado; aqui existe e aqui produz, mas de olho na última moda das agências centrais da cultura. Ninguém ainda nos mostrou nosso retrato tão impiedosamente, mesmo através de tantas mediações, e talvez sem o saber, como Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas. Nas páginas desse livro perpassa a sombra do letrado brasileiro." (14)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Rosa em vídeo - Haroldo de Campos

Maravilhosa entrevista com Haroldo de Campos, que além de analisar a obra de Rosa conta histórias deliciosas dos seus contatos pessoais com o autor, fazendo revelações, por exemplo, sobre a religiosidade e sobre os métodos de criação. Destaque também para uma análise primorosa do conto "Meu tio Iauretê".

Rosa em vídeo - Haroldo de Campos

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - Trilhas no Grande sertão - Manuel Cavalcanti Proença 1958 - parte 6 - Aspectos formais

"Redemoinho", xilogravura de
Arlindo Daibert
Capítulo IV - Aspectos formais

Embora alertando para o fato do artificialismo das classificações, Proença chama o estilo de GSV de barroco "resultante expressional de uma carga emotiva muito forte, cuja primeira consequência é o pendor enfático, irrepresável nos limites da linguagem comum. Daí, a busca de novas estruturas formais." (70)

"Esse permanente dinamismo não raro conduz a linguagem à obscuridade, e sempre à assimetria, fazendo-a oscilar entre a altiloquência e o lúdico meramente encantatório." (70)

Quando batizou seu primeiro livro de Saga (radical germânico) + Rana (ou Rã, sufixo tupi), "estava definindo um programa estilístico. Criava o seu vocábulo, sonoro e (71)
claro, sem preocupar-se com o veto gramatical aos hibridismos e proclamava sua adesão a um conceito de liberdade artística: daí por diante, utilizaria o instrumento que melhor transmitisse sua mensagem, sem indagar-lhe a origem ou a idade." (72)

"Dessa liberdade resultam aproximações que causam estranheza - regionalismos vizinhando com latinismos, termos da língua oral e da linguagem castiça entrelaçando-se, contiguidades surpreendentes do português arcaico e de formas recém-nascidas, mal arrancadas do porão das latências idomáticas, a estrita semântica dos termos etimológicos e translações violentas, de impulso metafórico ou não." (72)

Latinismos: p.ex. '... os hermógenes (...) renitiam feito peste', do latim Reniti (depoente): resistir a, forcejar contra; outro: ' Zé Bebelo perequitava, assoviando', do latim Perequitare: Percorrer fileiras a cavalo, andar a cavalo para lá e para cá. (72)

Arcaísmos: um pouco difíceis de se estabelecer porque "muitos regionalismos brasileiros são formas arcaicas ainda viventes", de qualquer forma, p.ex. 'Medeiro Vaz estava ali, num aspeito repartido'; '... sempre bater para o nascente, direitamente em cima de tremedal'; 'Se nanja, sei não';

Além disso, há também formas sintáticas em desuso, que aparecem frequentemente: '... a inocência daquela maldade. A qual que me aluava'; 'Onde que, mas dele livre me vi, gritei, despachado'.

E também palavras de uso corrente empregadas com significação arcaica: 'Mesmo o mais grave sido que restamos sem os burros'; 'Saí alegre do bordel, acinte' (73)

Palavras eruditas: p.ex. 'Não vim socolor de disfarces, com escondidos'; '... atravessamos o córrego, pulando pelas alpondras'

Indianismos:  só raramente, mas ocorrem, p.ex.: 'um mato fechado caapuão'; "um caboclo rastejador que viria para tapejar o bando de Joca Ramiro"; jagunços "disfarçados de mbaiá (...) isto é, revestidos com moitas verdes e folhagens'; (74)

Explicações: Tapejar. Na Amazônia existe a forma tupi tapejara, designando os (74)
"conhecedores de caminhos, os guias"; mbaiá "é designação que a si mesmos davam os guiacurus; e era deles o ardil de se disfarçarem com galhos de arbustos durante o combate" (75)

et alii: "Mas não só com a língua portuguesa, o latim e o tupi, Guimarães Rosa se permitiu liberdades de criador. Foi buscar palavras onde quer que correspondessem ao seu desejo de música ou de força expressional. Assim, inventou quirguinchar para o grunhido do tatu, partindo do quíchua quirquincho, ainda hoje usado em vários países da América espanhola para designar esses desdentados. E até o deus babilônico Shamash vem para o grande sertão, onde o sol chamacha. Em ambos os casos, entretanto, a liberdade se apoia em coincidências fonéticas - chama e guincho - disfarçando o pleonasmo sem quebrar-lhe a força." (75)

***

Nega que Guimarães Rosa tenha criado uma língua: "O que ocorreu foi a ampla utilização de virtualidades da nossa língua, tendo a analogia, principalmente, fornecido os recursos de que ele se serviu para (75)
construir uma fala capaz de refletir a enorme carga afetiva do seu discurso." (...) "não cabe falar em criação, mas em esforço consciente no sentido de uma evolução da linguagem literária." (76)

"Dada a busca da oralidade, a linguagem de Guimarães Rosa não pode deixar de ser examinada sob esse aspecto. Convém, no entanto, esclarecer que o aproveitamento das peculiaridades orais, no caso, não implica em reprodução documental da linguagem falada. O que existe é estilização dos processos expressivos que a caracterizam e de suas tendências para a intensificação." (78)

"Se, para metodizar, começarmos pelo vocabulário, ressalta desde logo o caráter neologistico; latinismos, sufixações e prefixações inesperadas e os próprios arcaísmos são outros tantos vocábulos novos, ou reanimados - quase diria reencarnados - repostos a viver na frase, não mais com o sentido que lhes dava a língua velha, (78)
mas alterado e adaptado à nova existência." (79)

Em termos sintáticos os processos enfáticos se valem de:

Expletivos [palavras ou expressões não indispensáveis, que servem somente para enfatizar], "Altamente enfático, o estilo de Guimarães Rosa não podia fugir a esse recurso", p.ex.: 'Certo dia se achando trotando por um caminho completo novo, exclamou: - Ei, que as serras estas às vezes até mudam muito de lugar' (79)

Pleonasmo: "É outro recurso enfático das predileções do escritor que dele muito se valeu, quer pela repetição de cognatos, quer pelo repisamento semântico", p.ex. (cognatos): 'E Medeiro Vaz pensava era um pensamento'; '... paredão feito à régua, regulado'; e exs. de repisamento semântico: 'Medo mais? Nenhum algum!'; 'Tanto gabado elogio que não me mudou'; '... catando suas coisinhas para comer alimentação'; e também a mera repetição, reforçada pela pontuação: '... lindas pernas as lindas grossas', 'e eu gostava dele, gostava, gostava' (80)

"Embora menos frequente, mas muito expressiva, a pluralização desnecessária e inusitada aparece como recurso de concretização": '... ser para nós todos campo de fogo e aos perigos de mortes'; 'naquela hora, minhas caras deviam de estar pegando fogo' (81)

Superlativos: aqui anotadas as construções mais raras, evidentemente superlativas, p.ex.: 'o punhal parou diantinho da goela do dito'; 'Cá pensei, silencioso, silenciosinho' (81)

Ordem (das palavras): "a ordem lógica da gramática não é a mesma da linguagem falada. Predominantemente emocional, esta possui a sua lógica, sobretudo afetiva, que arruma as ideias, menos segundo regras objetivas de raciocínio, do que atendendo à importância subjetiva de cada palavra para quem fala." (81)

p.ex. antecipação para valorizar elementos de segunda ordem: '... - lá judiaram com escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar'; 'As canoas eram algumas, elas todas compridas, como as de hoje'; '... o Tal não existe; pois é não?' (82)

E há também jogos sonoros: "Os caminhos - ou veredas? - estão balizados pela aliteração mais primitva ou pela coliteração mais sutil, daí passando para a repetição de consonâncias, a partir da tônica e na mesma ordem, verdadeiras rimas em consoantes como perfilha - fartalha, até chegar, em muitos casos, à rima perfeita, quando não aos segmentos metricamente isossilábicos, ao puro jogo inventivo, às onomatopéias."; são métodos da linguagem popular (82)
e "desde Sagarana o uso desses recursos ritmicos é uma constante da sua estilística." (83)

Aliteração, p.ex.: '... estou de range rede'; ... de poleiro pêgo prévio, abrimos nossa calamidade neles'; 'Molhei mão em mel' (83)

Coliterações, p.ex.: '... nas folgas vagas'

Rimas em consonância, p.ex.: 'Estalinho de estrêlas'; 'Pelo pulo fino'; 'Sungar segrêdo'; 'Escapulido, calado' (83)

Rimas toantes, p.ex.: 'Tem coisa e cousa, e o ó da rapôsa'; 'Fumacinha é do lado - do delicado'; 'Amigo era o braço, e o aço!' (84)

Ritmo tônico, p.ex.: 'Rincha-mãe, Sangue-d'Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre' (84)

"Como se vê, nem sempre os exemplos são puros; acumulam-se num mesmo trecho vários recursos rítmicos, reforçando, às vezes até a pura música, a tendência lúdica da prosa." (84)

Onomatopéias, p.ex.: 'um couro (...) por resguardar a pessoa do rumo donde vem o vento - o bafe-bafe'; '... o xaxaxo de alpercatas'; '... o plequeio das alpercatas' (84)

"Como puro jogo sonoro associativo, cabem alguns exemplos:
'... verde que afina e esveste, belimbeleza'; '... o bambalango das águas'; 'Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal (...) às vezes davam beijos de biquinquim' (85)

"Para manter em permanente vigília a atenção de quem lê, todos esses vocábulos de som e forma inusitados funcionam como guizos, como coisas que se movem, criando, não raro, dificuldades à compreensão imediata do texto e, de outras vezes, explicando além do necessário. Mas, vencido o primeiro movimento de resistência - esse existe até, e principalmente, em leitores letrados - a sensação do novo, do recomposto, do revificado se impõe e Guimarães Rosa toma conta, quase leva a desejar que a língua seja sempre assim, criadora e liberta de toda peia." (85)

"Mas - convém repetir e explicar melhor - ele não usou um sistema arbitrário, nem de hermetismos intencionais; apenas exagerou tendências da linguagem regional, quer sintáticas, quer expressionais, explorando as virtualidades da língua" (85)

Nos idiomas vivos o sentido etimológico dos vocábulos vai empobrecendo com o tempo. "Guimarães Rosa não faz outra coisa senão apelar para a consciência etimológica do leitor, neologizando vocábulos comuns, reavivando-lhes o significado (...) dando-lhes uma precisão que esse mesmo uso acabou por destruir." p.ex. : 'Agora, a forca, eu vi - (...) arvorada bem erguida no elevado'; 'Leôncio Du, que tinha afastado todo o mundo e meneava um facãozinho' (86)

E às vezes faz o inverso, surpreendendo ao obliterar o sentido etimológico de palavras: 'Mas, se a gente der condena de absolvido, soltar esse homem'; '... o senhor não padeceu feliz comigo?' (86)

Também emprega inesperadamente um sufixo, revalorizando "o radical que o uso contínuo tornou irrelevante: '... lisas pedras soltadas, no ribeirão lajeal'; 'Diadorim - o nome perpetual'"; (87)

Em outros casos, "transfigura o vocábulo, agregando sufixo a um radical transformado: 'Como é que eu vou dar letral (literal) os lados do lugar...'; - ou, inversamente, anula o sufixo, alterando-o: 'Visivo (visível) só vi Diadorim'" (87)

"Derivações imprevistas ou lúdicas comparecem na estilística de Guimarães Rosa, surpreendendo e prendendo a atenção do leitor: '... os finos ventos maiozinhos'; '- Tinha de vir, demorão ou jàjão'; '... ela era uma bobinhã'; '... o cheiro do musguz das árvores'

Prefixação

"Do mesmo modo que a sufixação, a prefixação inusitada traz vitalidade ao radical e à partícula afixada" (...) "Basta exemplificar com o sufixo oso, remoçado e surpreendente no corposo sofrimento dos cavalos de Grande Sertão: Veredas, ou com o prefixo per, tão expressivo no pervoar de Guimarães Rosa, quanto embotado em perfeito ou permanecer." (87)

"A prefixação, tal como Guimarães Rosa a usou, é, seguramente, um recurso criador de densidade semântica. De outras vezes, recurso de síntese. Ou, ainda, (87)
recurso sonoro, quase onomatopaico, como poderemos exemplificar com o vocábulo sonoite, em que nos parece encontrar a sugestão de sono e de todos aqueles barulhinhos da noite no mato, daquela noite tão vivamente descrita em que a chuva, o vento, o rio acompanham a agonia de Medeiro Vaz." (88)

A prefixação é um dos recursos mais utilizados por Guimarães Rosa, com diferentes efeitos:

[i] "vocábulos prefixados sem intenção precisa (...) em que a prefixação, embora revitalizando a palavra, não lhe altera o sentido e aqueles em que vale cmo processo de síntese: '... estava perdido, deerrado de rota...'; 'E chuva alta que envinha, estava mandando urubu para casa'; 'agora sochupei aquele vapor fresco'; '... batatas e mandiocas, sempre quentes no soborralho' (88)

[ii] "vocábulos em que a prefixação atua como força intensificadora do sentido", com predominância para os prefixos re e des, mas utilizados com sentido diferente do normal: "o re, habitualmente empregado como indicativo de repetição, aparece como simples ação intensificadora, assim como o des, que na linguagem comum apenas exprime ação contrária à do radical" (88)

p.ex.: 'Era o manuelzinho-da-c'rôa sempre em casal, (...) desempinadinhos (muito empinados), peitudos'; 'Manhãzando, ali estava re-cheio (muito cheio) em instância de pássaros'; '... relimpar (limpar bem) o mundo da jagunçada braba' (89)

Aglutinação, "é outro recurso" (...) "a agregação de dois radicais, criando uma soldadura de significados pluralizados: '... na brumalva daquele falecido amanhecer'; 'O fechabrir de olhos' (89)

Justaposição, "empregada como recurso de economia verbal, às vezes com intenção onomatopaica, às vezes combinada com outros processos de intensificação semântica: 'jagunço é no quem-com-quem'; 'Sol-se-pôr, saímos e tocamos dali' (89)

Emprego do particípio presente em substituição às orações de pronome relativo (para enfatizar): '... se abraçavam com os animais caintes (que caíam)' (89)

Uso do particípio passado pelo gerúndio (com o mesmo fim): '... percebi que, de me ver tremido (tremendo) todo assim, o menino tirava aumento para sua coragem'; (...) '... mosquitinhos chupadores, donos da vazante, uns mosquitinhos dançadinhos (que dançam), tantos de se desesperar' (90)

"A formação de verbos a partir de nomes, processo enfático da linguagem popular e também da infantil", é técnica de economia formal, agrega densidade semântica e "oferece imensas possibilidades neologísticas": '... buritizal, que lequelequeia' (90)

Substantivação ou verbalização de sintagmas, p.ex. : '... Diadorim se maisfez, avançando passo'; 'Assim-assei, naquela influição'; '... o homem foi se avontadeando, encompridando as respostas' (90)

Verbos reanimados por prefixos fortes, ou sufixos significantes, p.ex.: 'Daí, trasla um duro chão rosado'; 'A vida é ingrata no macio de si: mas transtraz a esperança'; '... fiquei sonhejando' (91)

Formas inesperadas aparecem verbalizadas, com acento lúdico, p.ex.: 'O Hermógenes, com seu pessoal dele - que nem em curvas colombinhando, rastejassem...'; 'Agora esse (o demo) se prespiritava por lá, sabível mas invisível'; 'Coração vige feito riacho colominhando por entre serras...' (de colomi, curumim) (91)

Substantivização, recurso enfático, pela plasticidade que transmite aos vocábulos, p.ex.: '... para ele um vice-versa de tristeza'; '... fomos rondar os caminhos de porventura dos bebelos'; 'Careço de três homens bons, no próximo de meu cochicho' (91)

Expressões substantivadas, p.ex.: 'No entre o Condado e a Lontra, se foi a fogo' (91)

Também com propósito neologístico, a deformação ou estruturação de locuções adverbiais, p.ex.: '... se ouvia o corrute dos animais, que pastavam à bruta no capim alto'; 'Assim, à parva, às tantices, essa mocinha Miosótis também tinha sido minha namorada' (91)

O rejuvenescimento, quer de conteúdo, quer de forma, de lugares-comuns e clichês estereotípicos, p.ex.: (91)
'... deviam de estar agora desqueleixados (de queixo caído), no escuro'; 'No mais, nem mortalma (viva alma); '... falou, numa voz rachada em duas' (de taquara rachada) (92)

Toponímicos

Aqui Guimarães Rosa deve ter utilizado alguns que colheu na região e outros que inventou, mas seguindo uma tendência já existente de denominações nascidas ao acaso e que já haviam sido assinaladas por viajantes como Saint-Hilaire, que na sua Viagem às Nascentes do São Francisco, encontrou Vertentes do Jacaré, São (93)
Miguel e Almas, Registro dos Arrependidos, Porto do Quebra Anzol, Braço do Veríssimo, Porco Morto." (94)

"No São Francisco há um arraial do Bem-Bom. Contaram-me que esse nome de batismo foi dado pelos fugitivos de uma enchente que ali puderam atracar as canoas em lugar mais alto, bem bom para quem não achava onde aportar." (94)

"Viajando na mesma região, Martius anotou que muitas vezes os nomes dos lugares eternizaram o estado de espírito em que se achavam, ao descobri-los, os primeiros ocupantes: Bonfim, Bemposta, Sem-Dentes, Foge-Homem, Arrependido." (94)

Assim G.Rosa "apenas multiplicou os termos geográficos, seguindo as normas que o povo usa para batizar terras e águas" aon inventar: o Buriti-do-A, o Ôlho-Água-das-Outras, a Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita, o Curralinho, o Poço Triste (94)

"E Riobaldo conta um desses batismos: 'Descemos a Vereda-do-Porco-Espim, que não tinha nome verdadeiro anterior,e, assim chamamos, porque um bicho daqueles por lá cruzou'." (94)

[FIM DO RESUMO DO LIVRO DE Manuel Cavalcanti Proença]

(Continua, se os deuses forem bons :-) )

Bibliografia:

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - Trilhas no Grande sertão - Manuel Cavalcanti Proença 1958 - parte 5 - O plano mítico (parte II)

"Redemoinho", xilogravura de
Arlindo Daibert
Capítulo III - O Plano Mítico (Parte II)

(Continuação)

Vento

"Mensageiro de grandes notícias, precursor de acontecimentos decisivos - talvez reminiscência bíblica - o vento é personagem importante de Grande Sertão: Veredas." (48)

"Adolescente, quando vê, pela primeira vez, um bando de jagunços, em casa do padrinho Selorico, eles rompem de portas a dentro 'com uma aragem que me deu susto de possível reboldosa'. Desde essa noite, às vezes confundido com o próprio destino, o vento será seu companheiro de aventuras" (48)

"A paixão por Diadorim se revela numa tarde de muito vento: 'O rancho era na borda-da-mata. De tarde, como estava sendo, esfriava um pouco, por pejo (48)
do vento - o que vem da Serra do Espinhaço - um vento com todas as almas. Arrepio que fuchicava as folhagens ali, ia lá adiante, longe, na baixada do rio, balançar esfiapado o pendão branco das canabravas (...) Me deu saudade de algum buritizal, na ida duma vereda em capim tem-te que verde, termo da chapada. Saudades dessas que respondem ao vento, saudade dos Gerais (...) E escutei o barulho, vindo de dentro do mato, de um macuco - sempre solerte. Era mês de macuco ainda passear solitário - macho e fêmea desaparelhados, cada um por si.'" (49)

"Nesse trecho fundem-se todos os personagens do livro em seu plano mítico: o rio, o vento, a chapada, o buritizal; e o pássaro solitário recebe a transferência sentimental: Riobaldo também procura o seu amor e encontra Diadorim que é impossível." (49)

"Outros amores o vento lhe trará." Antes de chegar na fazenda onde mora Otacília "um largo vento o rodeia, falando em liberdade" (pois depois ele casará e ficará preso) (49)

No Urucuia 'aprazia escutar o ventinho do chapadão, com o suave rumor que assopra e faz.' (49)

É também o vento que anuncia a vinda de Zé Bebelo e avisa acerca da morte de Medeiro Vaz ('dava um frio vento, com umidades') e depois, de Joca Ramiro ('quando o vento dava para trás, trazia as tristes fumaças [das queimadas]') (50)

"O primeiro aviso de que Diadorim vai morrer na luta contra os judas é um golpe de vento." (...) 'Do vento que vinha rodopiado. O senhor sabe - a briga de ventos. O quando um esbarra com o outro, o doido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no alto, a ponto às voltas, folharada, o ramaredo quebrado, no estalar de pios assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora o ró-ró. A gente dava graças a Deus.' (50)

Diadorim não acha nada demais, "Mas Ca- (50)
çange, o rústico, mais próximo dos segredos da terra e do ar 'não entendia que fosse: redemunho era d'Êle - do diabo. O demônio se vertia, ali dentro viajava.'" (51)

Riobaldo, de início, dá risada, mas depois vem a compreender o aviso e se arrepende: 'Na hora, não ri? Pensei: O diabo na rua, no meio do redemunho... Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas palavras que o senhor não deve de renovar.' (51)

"Na encruzilhada, quando vai chamar o diabo para o pacto, esperava que ele surgisse na 'lufa de um vendaval grande, com ele em trono' " (51)

É um 'montão de vento', com o céu depois se firmando azul e com sol que anuncia a aceitação de Riobaldo como chefe (52)

"Aproximando-se o encontro decisivo, sem saber de onde viriam os judas, ele ausculta os ventos" (52)

"Na véspera do último combate, o vento dá um aviso que ele não entende." (52)

O vento cresce quando Diadorim e Hermógenes estão se enfrentando a punhal. (53)

"se ele [o vento] tanto aparece no livro será porque num romance telúrico, como o de Guimarães Rosa, os elementos da natureza têm mesmo de comparecer. Riobaldo sem o seu ambiente não seria figura de romance moderno. Tanto mais que nos seus Gerais, nos imensos desertos deste Brasil, o homem é mais próximo da terra e do clima que o dos outros homens." (53)

"Não será pela importância do vento naquele pedaço do mundo [onde se passa a aventura bíblica], à beira dos grandes desertos? Vento anuncia chuva, vento desmancha as que vão se formando, toca para longe as nuvens benfazejas. Pois, nos Gerais, o fenômeno é o mesmo. O homem do sertão olha muito para o céu de que depende a roça pequena da família e o vasto campo do gado. Assim, Riobaldo conhecia os ventos. E porque os conhecia, sentia-lhes a chegada, observava-lhes os caminhos, media-lhes a força." (53)

"Não era lavrador. Era jagunço. Vento para ele não avisava chuva. Anunciava o inimigo, a guerra, a (53)
morte, ou o remanso." (54)

***

Buriti

"O buriti é sempre uma nota de suavidade no livro intensamente dramático de Guimarães Rosa. Todos os outros elementos - rio, vento, sertão, terras e céus - como que participam ativamente da estória, impregnam-se de cada 'vivimento' de Riobaldo e de seu bando.
O buriti, não. Nem Otacília. Nem a Bigri que passa levemente numa página do livro, sombra esmaecida de ternura. Pertencem a um plano diferente da vida. O buriti é a imagem da casa e da mulher, da mãe cedo perdida, da noiva muito sonhada." (54)

Esta simbologia já estava presente em Corpo de Baile, cantada pelo violeiro João Fulano:

'Buriti minha palmeira,
mamãe verde do sertão'

E o poeta Siruiz canta o 'buriti - água azulada' (54)

"E a canção de Siruiz é o encontro de Riobaldo com a poesia" (54)

"associação facilmente identificável ao longo do livro, entre buriti e tranquilidade, buriti e noiva, buriti e mãe, buriti e poesia." (55)

"Antes da primeira travessia do Liso do Sussuarão, a última imagem do mundo que iam deixar, talvez para sempre, é um buritizal" (55)

"Na dura travessia, pendido na sela, a testa de chumbo, desvairado de calor e de cansaço, pensa em Otacília, a dos Buritis-Altos:

'Buriti, minha palmeira,
lá na vereda de lá:
casinha da banda esquerda,
olhos de onda do mar' (56)

"Na vida de Riobaldo, 'de um lado e do outr se alinhando, acompanhando', o buritizal marca os remansos." (57)

"Buritis, do Boi, do A, das Três Fileiras, Perdido, o Bom Buriti, e outros, indicam roteiros, marcam estâncias de repouso, reencontro de companheiros." (58)

"Medeiro Vaz - 'palmeira que não debruça - buriti sem entortar' - é enterrado, em dia de chuva e desolação, e 'palmas de buriti novo, cortadas, molhadas' são a mortalha com que o sertão recobre o corpo do Rei dos Gerais." (58)

"Sombra sempre boa, o buriti é para o barranqueiro do São Francisco, prova da existência de Deus: 'Deus é alegria e coragem. Ele é bondade adiante. O senhor escute o buritizal.'" (58)

Otacília é chamada de 'formosura dos buritizais' (59)

Diadorim, se ele soubesse, também "poderia ter sido remanso, ternura consentida. (...) Por isso, no desespero da revalação tardia demais, só sabe dizer: 'Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais lavrados de verdes... Buriti, do ouro da flor...'" (59)

***

Destino

'Se não tivesse parado por um lugar, uma mulher a combinação daquela mulher acender a fogueira, nunca mais nessa vida teria topado o Menino?'

"Na pergunta do barranqueiro do São Francisco, Riobaldo está medindo a parte do Destino em sua história. Porque o Menino que só por acaso reencontrara, tinha sido a sua própria vida de jagunço. Sem ele não teria havido a demanda dos judas, o pacto com o Demo, tanta luta, glória e amargo desespero.
- 'O Urutu-Branco?' - pergunta, recordando. 'Ah, esse... tristonho levado, que foi - que era um pobre menino do destino...'" (59)

"Não lhe cabe responsabilidade do que foi, joguete dos fados. 'Podia até ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços.' Nascera chefe e sabia disso: - 'Para outras coisas não fui parido'. E sabia que 'as coisas acontecem é porque já estavam ficando prontas, noutro ar, no sabugo da unha.'" (62)

Também Diadorim tinha seu destino marcado, desde o berço 'para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor' (64)

***

Mar

"A raridade com que se entremostra nas seiscentas páginas de Grande Sertão: Veredas, valoriza a presença do mar, como símbolo cujo sentido não se revela claramente, mas que roça com um largo sopro de poesia trechos de grande intensidade emocional." (65)

"o mar nele [GSV] aparece como o grande desconhecido, mistério que se associa à morte, à eternidade, ao fim de tudo, quando a vida desagua no infinito." (65)

Apegando-se à santa de sua infância, Nossa Senhora da Abadia, com medo de que o diabo venha lhe cobrar o pacto: 'Só Ela me vale, mas vale por um mar sem fim.'  "Nesse trecho, o mar se confunde com a própria misericórdia divina, em que se dissolverão todos os pecados do jagunço, enfim apaziguado." (66)

"Mar e morte. Imagens paralelas desde o primeiro combate no bando dos ramiros." (68)

"Finalmente, reforçando a analogia mar-mistério, a imagem volta no Paredão. Diadorim morreu, Riobaldo abandona o cangaço. Doente, desesperado, sem rumo, a vida para ele não tem mais sentido. E querendo resumir toda essa amargura, o barranqueiro diz, apenas:
- 'Chapadão. Morreu o mar, que foi.' (68)

(Continua, se os deuses forem bons :-) )

Bibliografia:

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - Trilhas no Grande sertão - Manuel Cavalcanti Proença 1958 - parte 4 - O plano mítico (parte I)

"Redemoinho", xilogravura
de Arlindo Daibert
Capítulo III - O Plano Mítico (Parte I)

Neste capítulo, Cavalcanti Proença demonstra que rios, o sertão, os ventos, o buriti, o mar, mais do que elementos da natureza, têm todos uma dimensão simbólica e mítica, profundamente entranhada na narrativa.
***

Rio

Como exemplo maior de rio, temos o Urucuia e suas águas límpidas (31), acerca do qual Proença chega a perguntar:

"Ter-se-ia humanizado o Urucúia, a vingar injustiças, encarnado em jagunço?" (32)

"Abrindo suas confidências, Riobaldo logo menciona o rio Urucúia, o Diabo e o Sertão. Guimarães Rosa está apresentando alguns dos grandes personagens do romance em seu plano mítico." (32)

"Nesse plano, o rio é figura de primeira grandeza. Há mesmo, no desenrolar da estória, uma indistinção em que ele e herói se confundem, superpondo-se ou correndo paralelos." (32)

"Poderíamos, até, dizer que o rio é (32)
mais importante que o homem, pois este o liga a suas emoções, dele se vale para dar corpo às suas ideias, associa-o a seu próprio destino de jagunço, de amoroso e de místico." (33)

Sendo assim, Riobaldo é comparado ao 'rio desmazelado, livre, rolador' e entende a linguagem da água. (33)

"As fases de sua vida encontram reflexo no rio. A cólera pela morte de Joca Ramiro é uma enchente (...) Medeiro Vaz, também, morre em noite de grande chuva" (33)

O Urucúia é o rio do chefe Urutu-Branco, que o acha bonito por correr para o Norte e vir do poente 'em caminho para encontrar o sol' (34)

É também o seu 'rio de amor', o "Rio da sua vida" e "Com ele se identifica na hora de depor Zé Bebelo: 'Eu queria a (34)
muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem.' (35)

Uma vez chefe, na mensagem que manda a Otacília, pede que seu Habão não fale de jagunços e crimes e sim que Riobaldo e seus homens estão 'trazendo glória e justiça em território dos Gerais, de todos esses grandes rios que, do poente para o nascente, vão, desde que o mundo mundo é, enquanto Deus dura.' (35)

E antes de começara a guerra quer rever o Urucúia. (35-6)

Quando decide atravessar o Liso do Sussuarão, não pede conselho a ninguém, "pois ele é rio maior", feito o Urucúia que 'sai duns matos - e não berra; deslisa: o sol nele, é que se palpita no que apalpa. Minha vida toda.' (36)

No julgamento, a jagunçada que se reúne em torno é comparada 'aquele povo-rio que enche com intervalo dos estremecimentos' (36)

E Zé Bebelo, quando fala "procura cruzar aquele rio em enchente, começa a falar 'apalpando o vau', desconfiado, ouvidos atentos, 'aquela cabeça sobrenadando'". (36)

Quando Riobaldo evoca a força que lhe dera o pacto: 'Lembrei dum rio que viesse a dentro da casa de meu pai'. (36)

Quando fala dos caprichos do amor: 'Coração vivo feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.' (37)

"Navegar, remar, travessia, são palavras que muito emprega." Por exemplo: "O jagunço Lacrau, que tem medo do Diabo, não se arrisca a 'navegar por detrás das coisas'' e "Medeiro Vaz, é chefe até na hora da morte 'se governando mesmo no remar da agonia' "(37)

"Otacília o deslumbra, ela é o outro lado da vida, a doçura que não conhecia: - 'Me airei nela com a diguice duma música, outra água eu provava'. Otacília é remanso de rio, a curva onde ele se acolhe, onde a correnteza do destino puxa menos - 'Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucúia, mas que é rio de brabeza'." (38)

Já Diadorim é uma correnteza: 'Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio é bravo?' (38)

"Murado na solidão do amor proibido, Riobaldo 'turvava muito' como o rio Cariranha, 'quase preto'." (38)

"Num intervalo da luta, sentindo o cheiro dos mortos, começa a filosofar sobre a condição humana dos adversários, que ' não deviam de ser somente os cachorros endoidecidos, mas em tanto, pessoas, feito nós'. O problema o tortura: 'Uma poeira dessa dúvida empoou minha ideia, - como a areia mais fininha que há: que é a que o rio Urucúia rola dentro de suas largas águas, quando as chuvaradas do inverno.'" (39)

"Pecador, receando ter vendido a alma ao demo, Riobaldo transfere para o rio a necessidade de purificação: 'Queria ver ainda uma igreja grande, brancas torres, reinando de alto sino, no estado do Chapadão. Como que algum santo ainda não há de vir das beiras deste meu Urucuia?'" (39)

"Riobaldo, Rio-Baldo, não se realizou como jagunço. Ele mesmo descobre na Fazenda dos Tucanos, analisando a atitude dos companheiros: '... o que parecia moagem, para eles era festa. Feito meninos. Disso eu fiz um pensamento: que eu era muito diverso deles todos, que sim. Então, eu não era jaguço completo, estava ali no meio executando um erro.'" (40)

"Jagunço frustrado na hora decisiva, ausente do último combate, assiste, da janela do sobrado, imobilizado pelo ataque, ao duelo entre Diadorim e Hermógenes. Diadorim morre, o rio muda de rumo: 'O senhor nonada conhece de mim: sabe o muito ou o pouco? O Urucúia é ázigo... Vida vencida de um, caminhos todos para trás...'" (40)

"'O Urucúia, perto da barra', - ele pensava, no Paredão. Para os rios, a barra é a morte. Para Riobaldo, (40)
a velhice é fim de rio: 'O meu Urucúia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes'" (41)

"Quando, pela primeira vez, garoto pobre, atravessou o São Francisco, em companhia do Menino, teve muito medo. Riobaldo é o Urucúia, o afluente, para quem o do Chico representa o fim, a morte." (41)

"É a barra. Acabou-se o Urucúia que nasceu de um buriti, amou um buriti e se acabou no São Francisco. O São Francisco é que chega à grandeza do mar, o Urucúia, não: é um rio baldo." (42)

***

Sertão

"o sertão surgirá sempre como terra sem lei, 'onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado'. Sertão ainda igual ao dos relatórios dos tempos coloniais que falavam de homens absolutos [grifo do autor], sem Deus, sem rei. Mundo de homens solitários, cruzando os cerrados e gerais, sem nome, sem história." (43)

"Travessia perigosa. Sertão não protege ninguém. Só é a favor de jagunço porque ele compendia as virtudes físicas do mestre em ofícios e habilidades da vida (43)
rústica e defende a terra primitiva contra o avanço da civilização, enfrentando a autoridade, peito a peito. O sertão se alia a essa luta, repelindo o invasor." (44)

P.ex. Zé Bebelo, que queria conquistar e destruir o sertão civilizando-o, mas que foi vencido pelo sertão e julgado por ele, como lhe diz Joca Ramiro: 'Adianta querer saber muita coisa? O senhor sabia lá para cima - me disseram. Mas, de repente, chegou nesse sertão, viu tudo diverso, diferente, o que nunca tinha visto. Sabença aprendida não adiantou para nada... Serviu algum?' " (44)

"O julgamento de Zé Bebelo é o diálogo entre sertão e cidade, adversários que nenhuma aliança jamais unirá" (44)

O crime de Zé Bebelo nas palavras de Joca Ramiro: 'O senhor veio querendo desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei...' (44)

Neste costume de jagunço, guerrear e matar não eram crime e sim, nas palavras de Sô Candelário:
'Crime, que sei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado... não cumprir a palavra...' (45)

Zé Bebelo volta e trai ao chamar os soldados do governo para o sertão, o que é percebido por Riobaldo, que passa a negá-lo como chefe. (45)

Mesmo assim, Riobaldo admirava Zé Bebelo, é esta a fraqueza do sertão: "admirar a cidade, invejar a inteligência construída sobre o raciocínio." Em horas de decisão importante, pensa em Zé Bebelo e repete suas frases. (45)

"A diferença fundamental entre ambos, é que Riobaldo jamais desejou derrotar o sertão, acabar com os jagunços. Lutar contra os judas era diferente" (45)

"Se, mais tarde, desejou ser chefe, foi para expulsar o intruso e porque se havia convencido de que o Hermógenes já não era o sertão, mas o próprio demo com quem pactuara" (46)

"Sertão e Satanaz protegendo os judas, até que os símbolos e imagens se superpõem claramente nos combates finais: 'Onde estava o Hermógenes? O céu botava mais nuvens. (...) O Sertão vem? Trinquei os dentes. Mordi mão de sina. (...) O Hermógenes estava para arremeter.' " (46)

"O sertão tinha cumprido sua parte no destino de Riobaldo. Apanhara-o, a ele, que era homem de paz e o fizera chefe de cangaço, pactário, até assassino, (46)
daquele pobre Treciziano." (47)

" 'O sertão me produziu, depois me engoliu, depois me cuspiu quente da boca'. Por que? O sertão não responde, não explica. Sertão é a fatalidade, o indecifrado mistério." (47)

***

(Continua, se os deuses forem bons :-) )

Bibliografia:

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Leituras de Rosa - Trilhas no Grande sertão - Manuel Cavalcanti Proença 1958 - parte 3 - Don Riobaldo do Urucúia, cavaleiro dos campos gerais

"Redemoinho", xilogravura
de Arlindo Daibert
No Capítulo II, Cavalcanti Proença começa classificando GSV como uma epopéia. (13) Apesar de abrir mão de uma argumentação mais copiosa e abrangente, assinala alguns elementos que apoiariam a sua hipótese.

Temos, por exemplo: "A intercalação de episódios convergentes com a ação principal, mas de função adjuntiva, podendo adquirir independência formal, aparece frequentemente (13);
desde logo, podem ser enumerados o do Aleixo, com os três filhos cegos, o do Joé Cazuzo, com visões sobrenaturais em pleno combate, o de Andalécio e Antonio Dó atacando o porto de São Francisco." (14)

Estes episódios entremeando os contos - característica de um estilo épico - aparecem em grande número em contos e novelas de Guimarães Rosa. No caso do GSV, o episódio de Maria Mutema "é um verdadeiro conto incrustado no corpo do romance, como processo de reter o desenvolvimento da ação, prolongando o interesse da narrativa." (14)

O julgamento de Zé Bebelo é para Proença "o ponto nodal"; a morte de Joca Ramiro "desata novamente a ação", "que, daí por diante, se desencadeia, em plano diferente, até a morte de Diadorim". Proença crê que temos aqui como tema, "material de filiação popular" (14)

O argumento central é que a própria figura do "cangaceiro", "como herói de poesia narrativa sertaneja, é assunto pacífico entre folcloristas, e o paralelismo com as epopéias medievais e seu sucedâneo - o romance de cavalaria, já tem sido apontado" (15)

Desta forma, Riobaldo seria "uma estilização da imagem convencional que o povo estabeleceu para seus heróis", com uma trajetória de menino sem pai, "tímido, mas com vários embriões de virtudes heróicas, que se irão acentuando, até elevá-lo, meio inconscientemente, a chefe indiscutido" (15)

Ele é uma espécie de "cangaceiro cortês", que não consegue cometer barbaridades, "não tolera a deslealdade e os desleais lhe são inimigos de morte, os 'judas'." (15)

E mais: "Muito folcloricamente, procura o (15)
equilíbrio social e tem rasgos de bandido romântico, favorecendo com esmola grande a mulher que dá à luz no casebre miserável." (16)

Diadorim lhe propõe cumprir algo típico desses romances de cavalaria: o voto de castidade (16)

"Os chefes sertanejos guardam traços medievais", desde a imponente e respeitável figura de Medeiro Vaz, 'duma raça de homem que o senhor não mais não vê' (16), passando por Joca Ramiro, que talvez se inspire em Rolando, "montado em cavalo branco feito um São Jorge" (17) e chegando a Zé Bebelo, que, "prisioneiro, submetido a julgamento, arenga como guerreiro medieval: '... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero julgamento, esta bizarria...' " (17). No fim do seu discurso, usa até uma expressão medieval: 'Mas, homem sou, de altas cortezias'. (18)

O julgamento seria "um recorte de romance de cavalaria transposto para o sertão", no qual "A grandiloquência das palavras realça a nobreza da ação" (18)

Um exemplo estaria no verdadeiro diálogo de barões entre Joca Ramiro e Zé Bebelo:

'- O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra.' (18)

Outro elemento caracteristicamente épico: "O sentimento de honra - o orgulho da luta sem outro galardão além da glória - inflama os jagunços do Grande Sertão." (19) Riobaldo, no mencionado julgamento, chega a dizer, coisa que Sô Candelário também faz, que a história "há de guardar o nome dos valentes, a fama de suas façanhas" (19)

Joca Ramiro é morto à traição como os heróis lendários e seus assassinos se degradam como "Don Galvan, cavaleiro de má andança, réu de covardia e deslealdade." (20)

Riobaldo anuncia aos companheiros de outro bando a morte de Joca Ramiro com cena e palavras medievais. (20)

Medeiro Vaz não consegue atravessar o Liso do Sussuarão da mesma forma que Percival ou Lancelote, "apesar de todos os preparativos", mas Riobaldo, assim como Don Galaaz, "realiza, protegido pelo acaso, sem mesmo se haver preocupado com provisões." (20)

As mudanças de nome, Riobaldo, depois jagunço Tatarana, depois chefe Urutu-Branco, são características dos cavaleiros corteses. (20)

Até a idade de ouro, de Ovídio, presente nos romances de cavalaria, comparece, com as enxadas que algum dia sairão sozinhas a capinar a roça. (20-21)

E os guerreiros são enumerados em véspera de batalha como nos romances de cavalaria (21):

'Para que relembrar, divulgar dum e dum, dar resenhas? Do Dimas Dôido - que xingava nomes até a galho de árvore que em cara dele espanejasse, ou até algum mosquito chupador. Do Diodôlfo (...)' (21)

"O encontro com o povo dos catrumanos, na região inóspita, é episódio de frequente correspondência em romances de cavalaria; lembremos a Ilha Encantada onde esteve Clarimundo" (22)

A vingança contra os 'judas' é como "uma demanda medieval, a luta de Deus contra o Diabo" (22)

"os cavalos passam a adivinhar que Riobaldo, agora, é homem sobrenatural, conserva o cheiro de quem o diabo farejou: aquele gateado, formoso, de imponência e brio, que se abaixa diante dele, depois de quase bolear com o dono, era o diabo e, por isso, gateado. Empina violentamente, mas Riobaldo lhe diz o nome: Barzabu. E porque havia adquirido ascendência sobre o diabo, porque deixára de temê-lo, altas horas na encruzilhada, o cavalo se submete, aceita que o dono lhe mude o nome para Siruiz, manso, doce nome do poeta da neblina." (23)

"Ao dono das terras ele dá como gage de aliaça, não 'correntias moedas de ouro do rei, mas costumeiras prendas de louvor aos santos'" (23)

"A convocação dos catrumanos para seguirem com os jagunços tem um sentido de grandeza legendária." (23)

"Na comitiva, o cego e o menino, inúteis e, por isso mesmo, dão a nota de grandeza e majestade, viajando a par com ele; Diadorim é o cavaleiro gentil" (24)

"Antes, porém, de empreender a demanda dos judas, é preciso voltar aos campos do Urucúia, receber os eflúvios da terra, encher os olhos da contemplação dos buritis, os ouvidos, com o berro dos bois. Quem vai vencer ou morrer, deve dar adeus às coisas queridas, à terra-mãe." (24)

"Em sonhos corteses, pensa em Otacília", 'montada num bom cavalo corcel', com a noiva mostrando 'a grandeza real dela' (24)

A vingança contra os judas é um bem que se faz à Humanidade: 'porque eu ia livrar o mundo do Hermógenes' (24)

"O combate a cavalo, no Tamanduã-tão, é uma verdadeira batalha campal (...) Ali, ele próprio se benze. Era o enviado de Deus, não era pactário." (25)

"Vez por outra, conscientemente ou não, o romancista deixa entrever em certas expressões as raízes antigas de sua efabulação: Joca Ramiro é 'um imperador em três alturas' um chefe valente é par-de-França, Riobaldo lê o Senclér das Ilhas e se compara a Guy de Bourgogne." (25)

"Espalham-se por todo o livro as deixas para que se descubra o sexo de Diadorim" (26)

[i] traços físicos como mãos muito brancas, braços bem feitos, cintura fina, passo curto, pestanas compridas, boca bem feita, nariz fino e por aí vai... (26)

[ii]  Diadorim usa uma tesoura de prata e navalha, que guarda em capanga decorada; ele corta os cabelos de Riobaldo; (27)

[iii] Diadorim faz segredo do próprio corpo se banhando de madrugada sozinho, desaparece de forma inexplicável, nunca tira o jaleco... (27)

[iv] tem um pudor feminino, pedindo a Riobaldo que faça suas necessidades longe dele (27)

[v] apesar de ser o guerreiro mais valente, com coragem que nunca vacila, tem reações bastante femininas: chora na chegada de Joca Ramiro, alegre com a vitória praticamente dança e se abraça impulsivamente com Riobaldo quando do julgamento de Zé Bebelo; quando morre o pai desmaia, soluça e tem quase um uivo de dor, fugindo para chorar escondido, deitado na relva; "Na Guararavacã, agrada as crianças" (27) E é ele que lava a roupa dos dois. Fica deslumbrado com uma pedra preciosa (Arassuaí) e no meio dos jagunços é o 'pé de salão'; quando sozinho gostava de cantarolar mas não fazia isto na frente dos outros, para não se trair pela voz (28)

[vi] Às vezes quase se revela diretamente, como quando tem tanto ciúme de Otacília que ameaça apunhalar Riobaldo ou quando diz a este que depois da vingança irá lhe contar um segredo. (28)

[vii] Há a sua reação ambígua diante do amor de Riobaldo, nunca deixando transparecer o que pensava ou sentia (28-9)

[viii] E há deixas, indiretas como o sonho em que Diadorim passa em baixo de um arco-íris ou quando Diadorim chama entusiasmado uma flor de cavalheiro da sala mas é corrigido por Alaripe, que diz que na sua terra o nome dela é dona-joana (29)

[ix] E diretas: "Ao narrar o encontro de Diadorim e Otacília, de recíproca hostilidade instintiva, o autor revela tudo, para seu próprio divertimento; quem até agora não descobriu, não o fará mais, até que a morte conte o grande segredo." (29)

(Continua, se os deuses forem bons :-) )

Bibliografia:

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Pedacinho de Rosa - Os demos

A figura do diabo é construída de forma ambígua na narrativa de Riobaldo. O Cujo se manifesta de diversas formas; se confunde até mesmo com Deus. Rosa brinca com a língua, pois afinal, um nome só para o Tal seria pouco:

"O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Côxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem Gracejos... Pois, não existe!"

("Grande Sertão: Veredas")

Leituras de Rosa - Trilhas no Grande sertão - Manuel Cavalcanti Proença 1958 - parte 2 - O plano subjetivo

"Redemoinho", xilogravura de
Arlindo Daibert
No capítulo I, "O plano subjetivo", Cavalcanti Proença desenvolve uma ideia central, de que o livro se estruture em "duas linhas paralelas":

"a objetiva, de combates e andanças - criadoras da personalidade do jagunço que termina chefe do bando; e a subjetiva, marchas e contramarchas de um espírito estranhamente místico, oscilando entre Deus e o Diabo." (6)

Este jagunço aposentado narraria, mais do que sua vida de aventuras, "a secular pendência entre o espírito do Bem e do Mal." (6)

Há uma oscilação encarnada em Riobaldo e "sua permanente preocupação em saber até onde somos criaturas de Deus ou escravos do Demo" (6)

Há um "mundo instável, em que só Deus é estático." (6).

Riobaldo sabe que "Deus é a justiça", "mas não compreende suas misteriosas sentenças, desconcerta-o a cegueira dessa justiça que castiga nos filhos inocentes, o crime do Aleixo. Diante do sofrimento dos cavalos feridos a bala, morrendo sem culpa, alvejados pelos jagunços, pensa: 'Acho que Deus não quer consertar nada, a não ser pelo completo contrato: Deus é uma plantação. A gente - é as areias.' " (7)

Diante da incerteza permanente, Riobaldo, agora fazendeiro sedentário e tranquilo, "vai ao encontro de todos os cultos: 'Reza é que salva da loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio.'" (8)

Para Cavalcanti Proença, ao fim da vida, Riobaldo "chega a um quase desencanto religioso, descobrindo, por si, a sabedoria do Eclesiaste, convencido de que é preciso viver com alegria, pensar para diante. 'Mas eu, hoje em dia, acho que Deus é alegria e coragem - que Êle é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal.'" (9)

Haveria uma "superposição de planos" que poderiam ser divididos em três partes: "A primeira, individual, subjetiva, que acabamos de resumir, antagonismo entre os elementos da alma humana; a segunda, coletiva, subjacente, influenciada pela literatura popular que faz do cangaceiro Riobaldo um símile de herói medieval, retirado de romance de cavalaria e aculturado nos sertões do Brasil Central [o que será o segundo capítulo do livro de Proença]; a terceira, telúrica, mítica, em que os elementos natu- (9)
rais - sertão, vento, rio, buritis - se tornam personagens vivos e atuantes." (10)

Esta análise, todavia, seria uma simplificação "pois que as várias camadas se interpenetram" (10)

"Decorre dessa complexidade uma abundância de elementos alegóricos, uma simbologia muito densa, além do caráter polissêmico das personagens." (10)

Para Proença, Diadorim "simboliza, algumas vezes, o anjo-da-guarda, a consciência de Riobaldo." Certa vez distrai Riobaldo da ideia fixa de fazer um pacto com o Diabo e este último se esconde de Diadorim quando resolve pactuar (10); Diadorim também o impede de matar o leproso e d'outra feita teme pela salvação de Riobaldo, a ponto até de esquecer do ciúme e mandar um recado para Otacília rezar pelo noivo. (11)

Outra prova deste papel de Diadorim: "Diadorim é o maior inimigo do Hermógenes, e, então, transfigurado no arcanjo Miguel, é ele quem vence e mata o Pactário." (12)

O próprio Riobaldo, "quando Diadorim morre, quando o Anjo o deixa", desmaia: "'Como de repente não vi mais Diadorim! No céu um pano de núvens.'" (12)

(Continua amanhã, se os deuses forem bons :-) )

Bibliografia:

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.





domingo, 23 de novembro de 2014

Leituras de Rosa - Trilhas no Grande sertão - Manuel Cavalcanti Proença 1958 - parte 1 - Introdução

"Redemoinho", xilogravura de Arlindo Daibert
Outro importante estudo veio a luz em 1958: Trilhas no Grande sertão. Logo de saída, na "Introdução", Manuel Cavalcanti Proença faz uma importante comparação entre a obra e o meio físico em que ela se desenrola, "por estas seiscentas páginas sem capítulos":

"Contínuas, mas não uniformes, imitam a região dos campos do planalto onde se sucedem sempre, sem extremar-se, os cerrados, as matas ciliares dos rios, as abertas, as várzeas das cabeceiras com buritis e buritiranas escutando conversas de araras e maracanãs." (3)

Neste sertão ou sertões de Mato Grosso, Goiás, Bahia e Minas Gerais, a natureza seria marcada pelos opostos violentos: períodos de seca quase absoluta alternando-se com grandes chuvas, ventos que espalham a chama até um riacho que lhes barre o caminho, solo "encarvoado" que reverdece em horas "logo nas primeiras chuvas do fim de setembro" (3).

Conclui para fechar esta parte:

"Neste mundo, fogo e água, Deus e o Demo, Guimarães Rosa acendeu gambiarras para Riobaldo passar." (4)

(Continua amanhã, se os deuses forem bons :-) )

Bibliografia:

PROENÇA, Manuel Cavalcanti. (1958) Trilhas no Grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.






sábado, 22 de novembro de 2014

Pedacinho de Rosa - Urubus

João Guimarães Rosa, caricatura
por Baptistão
O amor e o respeito de Guimarães Rosa pela natureza em todas as suas dimensões
fica expresso nesta descrição cheia de carinho que Pedro Orósio, o catrumano protagonista da novela "Recado do Morro" faz… dos urubus:

"Assaz quase milhares. Que passam tempo em enormes voos por cima do mundo, como por cima de um deserto, porque só estão vendo o seu de-comer. Por isso, despois, precisam de um lugar sinaladamente, que pequeno seja. Para eles, ali era o mais retirado que tinham, fim-de-mundo, cafundó, ninguém vinha bulir em seus ovos - 'Arubú tirou herança de alegre-tristonho… ' Tinha hora, subiam no ar, um chamava os outros, batiam asa, escureciam o recanto. Algum ficava quieto, descansando suas penas, o que costuravam em si, com agulha e linha preta, parecia. (…) Mas, bem antes, todos estavam ali, de patuleia, ocasiões de acasalar. Os urubus, sem chapéu, e dansam seu baile. Quando é de namoro, um figurado de dansa, de pernas moles, despés, desesticados como de um chão queimante, num rebambejo assoprado, de quem estaria por se afogar no meio do ar."

("Recado do Morro")

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Rosa em vídeo - Antonio Candido

Antonio Candido gravou uma belíssima e empolgada análise de Grande sertão: veredas, obra chamada por ele de "romance metafísico", explicando de que maneira Guimarães Rosa utiliza o Sertão para pensar "questões universais". É precedida de um breve comentário sobre Sagarana e há também algumas alusões ao próprio Guimarães Rosa enquanto pessoa, a suas conversas com Candido e a suas posições ideológicas. Também compara Rosa a Euclides da Cunha (diferenciado-os), a Dostoievski e a outros autores (que também buscariam questões essenciais do homem). Salienta, sobretudo, a "extrema ambiguidade", "o paradoxo, o deslizamento constante de sentido" no romance, que chega a ser chamado por ele de sur-regionalismo (que também estaria presente em Garcia Marquez e Juan Rulfo) (18'):

Antonio Candido sobre Grande sertão: veredas

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

(Continuação) Leituras de Rosa - "O homem dos avessos" ("O Sertão e o Mundo") - Antonio Candido 1957 - parte 4 (Final)

"Diadorim II", xilogravura
 de Arlindo Daibert

(Continuação - parte 4 - final)

O problema

Depois de apresentar esta magnífica análise, Candido, com humildade, a relativiza:

"É claro que essas interpretações são arbitrárias; além disso, iluminam apenas um dos muitos lados da obra, visando contribuir para que o leitor esqueça ao menos provisoriamente os pendores naturalistas a fim de penetrar nessa atmosfera reversível, onde se cortam o mágico e o lógico, o lendário e o real. Só assim poderá sondar o seu fundo e entrever o intuito fundamental, isto é, o angustiado debate sobre a conduta e os valores que a escoltam." (125)

Em GSV "o tonus é devido à crispação incessante do narrador em face dos atos e sentimentos vividos, traduzidos pela recorrência dos torneios de expressão, elaborados e reelaborados a cada página em torno das obsessões fundamentais." (126)

O pacto com o demônio é o "símbolo escolhido para dinamizar a recorrência". Se antes ele era um instrumento iniciatório [de Riobaldo enquanto chefe], agora, "se encararmos a individualidade de Riobaldo, a sua condição singular de homem, o demônio volta a simbolizar, como para Fausto ou para Peter Schmilh, a tentação e o mal." (126)

"O grande problema, para o narrador, é a existência dele: existe ou não?" (126)

[i] "Em princípio, sente que é um nome atribuído à parte torva da alma" mas sempre resta uma dúvida. Afinal, se o diabo, invocado nas Veredas-Mortas, não apareceu, por outro lado a partir daí houve nele uma mudança e "depois dela é que foi capaz de realizar coisas prodigiosas, inclusive a referida travessia do Sussuarão, fechado ao comum dos homens e docilmente aberto ao seu mando." (126)

"Daí a palavra que o autor inventou (...) para sugerir, conforme os seus processos lexicogênicos, a operação de um sortilégio sobrenatural: 'Sobrelégio?'" (126)

[ii. O diabo não precisa existir para se fazer sentir e estar, de certo modo, presente]

"E como (126)
tem consciência de que a manifestação concreta não é necessária para demonstrar a existência do Cujo, - mais princípio do que ente - permanece, no fundo, amarrado a ele, que se torna de certo modo o grande personagem, tanto mais obsedante quanto menos palpável" (...) 'Quem muito se evita, se convive' (127)

"Porque nada encarnaria melhor as tensões da alma, nesse mundo fantástico, nem explicaria mais logicamente certos mistérios inexplicáveis do Sertão." Por exemplo, a amizade ambígua por Diadorim. (127)

"O demônio surge, então, como acicate permanente, estímulo para viver além do bem e do mal; e bem pesadas as coisas, o homem no Sertão, o homem no Mundo, não pode existir doutro modo a partir duma certa altura dos problemas. 'Viver é muito perigoso' - repete Riobaldo a cada passo; não só pelos acidentes da vida, mas pelas dificuldades em saber como vivê-la." (128)

'O senhor escute o meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver - não é? - é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo. O sertão me produz, depois me cuspiu do quente da boca...' (128)

'Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa.' (128)

'Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.' (128)

"Daí o esforço para abrir caminho, arriscando perder a alma, por vezes, mas conservando a integridade do ser como de algo que se sente existir no próprio lanço da cartada. A ação serve para confirmar o pensamento, para dar certeza da liberdade." (128)

'Ao que naquele tempo, eu não sabia pensar com poder. Aprendendo eu estava? Não sabia pensar com poder - por isso eu matava.'

'Mas liberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer.' (128)

"A vida perigosa força a viver perigosamente, tendendo às posições extremas a que podem levar a coragem, a ambição, o dever." (128)

"Pelo menos duas vezes ocorre na fala do narrador um conceito que exprime este movimento, fundamental na ética do livro e na estrutura dos seus acontecimentos (...) Riobaldo caminha para ele [o ponto a partir do qual não há retorno] e o alcança através do pacto, que é ao mesmo tempo ascese (sob o aspecto iniciatório) e compromisso (sob o aspecto moral), confirmando a sua qualidade de jagunço." (129)

"O jagunço, sendo o homem adequado à terra, ('O Sertão é o jagunço') não poderia deixar de ser como é; mas ao manipular o mal, como condição para atingir o bem possível no sertão, transcende o estado de bandido. (...) O pacto desempenha esta função na vida do narrador, cujo Eu, a partir desse momento, é de certo modo alienado em benefício do Nós, do grupo a que o indivíduo adere para ser livre no Sertão, e que ele consegue levar ao cumprimento da tarefa de aniquilar os traidores, 'os Judas'. Graças a isto é vencida, pelo menos na duração do ato, a ambiguidade do jagunço, que se faz integralmente paladino. Tanto que Riobaldo não prossegue nas armas e se retira, acompanhado por grande parte dos seus fiéis." (129)

Passa a viver na fazenda que herdou do padrinho-pai "ao lado de Otacília, prêmio das andanças." (129)

'(...) o que mormente me fortalecia, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem de bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes gerais da jagunçagem.' (129)

"Renunciando aos altos poderes que o elevaram por um instante acima da própria estatura, o homem do Sertão se retira na memória (129)
e tenta laboriosamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço comovedor, em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos." (130)

"Desliza, então, entre o real e o fantástico, misturados na prodigiosa invenção de Guimarães Rosa como lei da narrativa. E nós podemos ver que o real é ininteligível sem o fantástico e que ao mesmo tempo este é o caminho para o real. Nesta grande obra combinam-se o mito e o logos, o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional, que disputam a mente de Riobaldo, nutrem a sua introspecção tacteante e extravasam sobre o Sertão." (130) 
* * *
"Se o leitor aceitou as premissas deste ensaio, verá no livro um movimento que afinal reconduz do mito ao fato, faz da lenda símbolo da vida e mostra que, na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos à realidade do quotidiano, onde se tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino que nos cabe. (130)

'A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...' (130)

"Entremos nessa realidade fluida para compreender o Sertão, que nos devolverá mais claros a nós mesmos e aos outros. O Sertão é o mundo." (130)

FIM do artigo

Obs: Negritos feitos por Marcos Alvito, não estão presentes no texto original; entre colchetes vêm comentários também feitos por Marcos Alvito. Os itálicos ao contrário, pertencem ao próprio texto de Antonio Candido.

Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. (2006), "O homem dos avessos" In: Tese e Antítese, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. pp.111-130.