sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 3 - Capítulo 2 - O sertão e o gado

Capítulo 2: O sertão e o gado

"Dá-se o nome de sertão a uma vasta e indefinida área do interior do Brasil, que abrange boa parte dos Estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Goiás e Mato Grosso. É o núcleo central do país. Sua continuidade é dada mais pela forma econômica predominante, que é a pecuária extensiva, do que pelas características físicas, como tipo de solo, clima e vegeta- (25)
ção", que podem variar da caatinga seca bem ao lado de um luxuriante barranco de rio (26)

"É a presença do gado que unifica o sertão. Na caatinga ária e pedregosa como nos campos, nos cerrados, nas virentes veredas; por entre as pequenas roças de milho, feijão, arroz ou cana, como por entre as ramas de melancia ou jerimum; junto às culturas de vazante como às plantações de algodão e amendoim; - lá está o gado, nas planícies como nas serras, no descampado como na (26)
mata. As reses pintalgam qualquer tom da paisagem sertajeja, desde a sépia na caatinga no tempo das secas até o verde vivo das roças novas no tempo das águas. " (27)

"O boi é presença marcante no Grande Sertão: Veredas. É o mundo da pecuária extensiva que ali está representado, como substrato material da existência; por isso, raramente em primeiro plano, mas formando a continuidade do espaço e fechando seu horizonte, impregnando a linguagem desde os incidentes narrativos até a imagética. O gado figura praticamente em todas as páginas: da primeira, em que Riobaldo fala do 'bezerro erroso', às últimas, quando reencontra Zé Bebelo que acabara de 'negociar um gado'. Em suas andanças, os jagunços de Guimarães Rosa estão sempre cruzando seus caminhos com os caminhos do gado; encontram vaqueiros, boiadeiros e reses. Os bois que encontram são indícios do que devem esperar das redondezas; se ariscos e bravios, não há gente por perto; se magros, apontam para a penúria do local, se bem nutridos são sinal de fartos recursos materiais." (27)

"A importância fundamental do gado no sertão se inscreve na frequência dos toponímicos no romance: Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita, Lagoa-do-Boi, Curral de Vacas" etc; Riobaldo fala de muitos rios e ribeirões chamados do Boi ou da Vaca; alguns jagunços tem nomes derivados: João Vaqueiro, Marruaz, Carro-de-boi. "Os jagunços cantam a Moda-do-Boi e quando Medeiro Vaz morre Riobaldo se lembra dos versos 'Meu boi preto mocangueiro/ árvore para te apresilhar?' " (27)

Objetos de couro e chifre são frequentes e mostram todo um modo de vida (27),
toda uma 'época do couro'. Objetos significativos como a capanga 'bordada e historienta' que primeiro guarda os utensílios de cuidado pessoal de Diadorim e que depois este presenteia a Riobaldo; o couro que levantaram para resguardar o cadáver de Medeiro Vaz do vento. (28)

Riobaldo usa os bois como termo de comparação com os homens: 'Todo boi, enquanto vivo, pasta' (28)

Bois e boiadas servem para o narrador-personagem construir imagens sobre seus chefes e companheiros, bem como sobre as relações entre eles. "Os jagunços são vistos como rebanho e só os chefes merecem imagens individuais". Sobre os bandos de jagunços, compara seu governo 'com o governo de um bando de bichos - caititu, boi, boiada'; já um chefe como Ricardão é comparado a um 'zebú guzerate' (28)
e Joca Ramiro é comparado a 'um touro preto', enquanto Medeiro Vaz 'morreu em pedra, como o touro sozinho berra feio' (29).

"A presença esparsa e constante do gado solto é a marca do Grande Sertão", onde predomina a criação mais rudimentar e primária. (29)

Historicamente, a criação de gado era subalterna em relação à produção agro-industrial, do açúcar e depois do café, sendo "empurrada para as regiões de solo pouco fértil" (30)

"A lógica do capital determinou que as melhores terras, as litorâneas e férteis, fossem reservadas para a lavoura da cana; a produção do açúcar, baseada no braço escravo, ocupa a posição de empreendimento prioritário que determina a posição de todos os demais. Mas, para garantir que a produção de açúcar fosse possível, era preciso garantir a subsistência de todas as pessoas envolvidas no processo produtivo e em sua comercialização: e essa é a razão da criação de gado", além de também fornecer força-de-trabalho para o engenho. (31)

Por outro lado, havia terra sobrando, mesmo que não aproveitável para o cultivo principal. Há outros fatores que também contribuem para a criação de gado no sertão: o gado é uma mercadoria que transporta a si mesma e a necessidade de capital e de mão de obra é mínima. (31)

"A pecuária foi uma espécie de filha-pobre da economia colonial" (31)

O empresário desprovido de maiores recursos podia iniciar a atividade com um pequeno investimento, erguendo uma casa com cobertura sobretudo de palha, currais e algumas cabeças de gado. (32)

Para os trabalhadores, os poucos necessários, as tarefas não eram consideradas as piores. "Seja para o vaqueiro, que cuida do gado dentro da fazenda, seja para o boiadeiro, que se encarrega da condução das boiadas fora delas, o gado propiciou tarefas não tidas por vis na sociedade colonial: o fato é que a pecuária sertaneja sempre foi trabalho para homens livres." (32)

Além de não ter que trabalhar de sol a sol todos os dias, o trabalhador perambula, dando-lhe "no mínimo, um simulacro físico de liberdade" e, ao mesmo tempo, anda a cavalo, sinal de posição já em Portugal: 'Homem a pé, esses Gerais comem'. (32)

Ainda é importante registrar que o objeto do trabalho é o animal, que muitas vezes acaba por constituir a própria remuneração. Por um lado, este trabalho implica numa 'proximidade física e afetiva' entre homem e animal, em que 'a percepção dos seres naturais é parte integrante da vida, como fonte de informação, como fruir de companhia, como garantia de sobrevivência'. P.ex. "o papel importante que tem o ensino da observação e o deleite da natureza e dos bichos feito por Diadorim" (33)

Por outro lado, o pagamento em gado permite a possibilidade de passar de empregado a dono, exercendo uma enorme atração não somente para os brancos mas também para mulatos, mestiços e pretos forros, esperançosos de um dia se tornarem fazendeiros. (34)


Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

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