sábado, 3 de janeiro de 2015

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 5 - Capítulo 4 - O inútil utilizado

Capítulo 4: O inútil utilizado

'Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota - quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Para ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final' (GSV)

"Livre, e por isso mesmo dependente. Sem ter nada de seu, e por isso mesmo servidor pessoal de quem tem. Inconsciente de seu destino, e por isso mesmo tendo seu destino totalmente determinado por outrem. Sem causas a defender, e por isso mesmo usado para defender causas (41)
alheias. Avulso e móvel, e por isso mesmo chefiado autoritariamente e fixado em sua posição de instrumento. Posto em disponibilidade pela organização econômica, que não necessita de sua força de trabalho, e por isso mesmo encontrando quem dele disponha, para outras tarefas que não as da produção. Tal é a condição dessa imensa massa de sujeitos disponíveis em suas 'existências avulsas', que estavam aí para serem usados, e que o foram, ao longo de toda a história brasileira." (42)

"esta prestação de serviços pode ir até o crime, que nada mais é do que uma das muitas obrigações devidas ao protetor" (42)

"As peculiaridades do povoamento - feito em unidades econômicas constituídas em propriedades rurais - resultaram na formação de pequenos núcleos, isolados uns dos outros, onde a autoridade suprema era o senhor." (...) "os objetivos defensivos pouco se distinguem dos ofensivos, pois questões de limites e aguadas entre os vizinhos levam a guerras prolongadas, depredações em fazendas alheias, represálias etc. (42) Os fazendeiros, por sua vez, faziam alianças, em geral baseadas no parentesco, com outros fazendeiros para defesa e/ou ataque. (42-3)

Quando havia uma aliança entre senhores, os jagunços ainda continuavam sendo liderados por seu chefe, não havia fusão e sim superposição das tropas, cada um obedecia ao seu capitão. "Cada chefe - fazendeiro e home de posses - entra com um contingente de homens dele, no que Riobaldo vê um arranjo semelhante a 'governo de um bando de bichos'  "(43)

"Cada fazendeiro com seus chefiados, em guerra privada: a unidade econômica mínima é também a unidade mínima do poder político no Brasil rural. Célula econômica com sua própria força armada, vai desembocar necessariamente na disputa do poder político. Na passagem da colônia para país independente, com a criação formal de um quadro de instituições para o exercício eleitoral-representativo do poder político, tais células entraram intactas nesse quadro. Não houve alteração do sistema de poder efetivo, houve apenas um ajustamento dele aos quadros formais então criados. Cada célula significa um dado número de votos; da aliança entre os senhores locais é que resulta, inflexivelmente, a eleição do candidato escolhido em combinação com os partidos, de quem eles são a expressão local." (44)

"O grupo armado, portanto, continua exercendo a mesma função, a de garantir pela força o poder pessoal, com uma ampliação agora: a intimidação do eleitorado e a baderna em dia de eleição. Os tumultos eleitorais, de que dão conta os historiadores, atravessam todo o Império e a República, alternando-se apenas com períodos de calmaria relativa quando a fraude e a corrupção (atas falsas, diplomas falsos, etc.) respondem melhor que a violência direta a uma nova restrição ou abertura no direito ao sufrágio." (45)

"Ao nível do município, o mecanismo de poder político-eleitoral era o seguinte: em cada município havia um agrupamento de senhores que encarnavam a 'situação' e outro agrupamento de senhores que constituía a oposição. Nada os distinguia, nem origem de classe nem ideologia: apenas eram aliados de partidos com nomes diferentes. Esse é o quadro que atravessa toda a história eleitoral do Império e da República Velha, pelo menos. Profundamente estático como estrutura, apresenta-se dotado de um dinamismo episódico extraordinário, já que se resolve em turbulência, assassínios, golpes de força, etc" (46)

Uma vez instalado no poder municipal, o grupo dominante só poderia ser retirado pela força ou por intervenção governamental (atuação do Poder Moderador no Império e das 'salvações' durante a República Velha), já que o domínio da máquina eleitoral tendia a perpetuá-lo. (46-7)

'Tudo política, e potentes chefias!': essa a matéria vertente que constitui a vida de Riobaldo, o jagunço. Membro de um grupo armado a serviço de senhores de oposição ao governo no momento, partilha a condição jagunça, potencial de força manipulada por outrem para o exercício do poder. Passível de ser utilizada para o trabalho como para a destruição, para manter a ordem como para ameaçá-la, para impor a lei como para transgredi-la, para vingar ofensas como para praticá-las, as razões que decidem de sua atuação num ou noutro sentido independem de sua escolha. O senhor é quem opta, o jagunço executa. Tudo o que se passa fora da imediatez das tarefas cotidianas, o traçado dos interesses, as linhas-mestras da história, está também fora do alcance de sua consciência. Às indagações de Riobaldo, Jõe Bexiguento responde com seu 'Uai, Nós vive...' ; porque: 'Duro homem jagunço, como ele no cerne era, a ideia dele era curta, não variava.' " (47)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

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