sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Leituras de Rosa - As formas do falso -Walnice Nogueira Galvão 1972 - parte 7 - Capítulo 6 - A linguagem e a fala

Capítulo 6: A linguagem e a fala

'- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.'

"A situação de narrar que Guimarães Rosa propõe tira sua verossimilhança de tantas outras a que estamos acostumados: o depoimento de um velho jagunço, anotado pelo entrevistador, antes, e hoje gravado em fita; aparece constantemente em livros, jornais e revistas." (69)

"O travessão que precede a primeira palavra do romance, e que só se fecha no ponto final da última página, instaura o monólogo como um dos lados de um (69)
diálogo; mas o diálogo que se contém nele é suposto. Nenhuma só vez o monólogo é interrompido para dar lugar ao interlocutor. (...) Colocam o intelocutor dentro do monólogo: as alusões diretas que o narrador faz a ele - 'Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe?'; as 'respostas' que têm a pergunta sugerida pela forma da frase - 'Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores.'; as perguntas que o narrador faz a seu ouvinte, sugerindo a ocorrência de uma resposta pela continuação da frase - 'Por que o Governo não cuida? Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio'. Assim vai se compondo a figura de um intelocutor que é hábil inquiridor, simpatizante e letrado." (70)

"É o monólogo, contendo um diálogo pela alusão a um interlocutor, que determina a opção pela fala. As frases interrogativas e exclamativas, as interjeições, os expletivos, as frases truncadas e entrecortadas, definem o discurso que se dá como fala. A fala é também o grande unificador linguístico; cancela a multiplicação de recursos narrativos - variação de pessoa do narrador, cartas, diálogos, outros monólogos; até mesmo as personagens do enredo falam pela boca de Riobaldo. É o fluxo da fala que impõe um ritmo próprio às sequências verbais" (70)

"Mas é preciso lembrar que se trata de 'fala' e não de fala. A magnífica oralidade do discurso é uma oralidade ficta, criada a partir de modelos orais mediante a palavra escrita. Por isso mesmo, é impossível ler o 'depoimento' de Riobaldo da maneira como se lê o depoimento de um velho jagunço. Já foi necessário a Guimarães Rosa fazer de seu narrador-personagem um letrado, para fundamentar, no nível da verossimilhança, uma experiência mental (70)
tão rica e que tão bem se expressa verbalmente. Afinal, o autor do depoimento é Guimarães Rosa. O 'depoimento' transcende inteiramente a situação concreta do narrador-personagem e mesmo a possibilidade de tal discurso partir dele." (71)

"Por um lado, subjaz a esse discurso um parentesco muito grande com o falar sertanejo (ou falares sertanejos); o leitor com ele familiarizado nota-o imediatamente." (71)

"Acontece, todavia, que Guimarães Rosa explora ao máximo as possibilidades do modelo, mediante este salto definitivo que representa a escolha do narrador-personagem. Tudo, então, se torna convincente como linguagem. Fica eliminado o contraste canhestro, tão praticado pela prosa regionalista, entre o diálogo que reproduz o falar e o não-diálogo que reproduz a prática letrada do autor." (71)

"A isso, Guimarães Rosa escapa colocando a totalidade do romance num só fluxo de fala." (72)

"Mas, por outro lado, o discurso de Grande Sertão: Veredas escapa também dos limites do falar sertanejo. É bem verdade que existe em seu vocabulário um farto aproveitamento de regionalismos, e não só sertanejos;" Palavras que parecem estranhas e inventadas ('vuvú vavavá de conversa ruim') estão consignadas em dicionários: (72)
vuvu é um regionalismo popular de Minas Gerais significando briga, conflito, confusão e vavavá é brasileirismo para barulho de vozes, algazarra, agitação, alvoroço, atropelo, azáfama. (73)

Também aproveita extensamente arcaísmos, característicos da língua brasileira do sertão, que às vezes parecem inventados: 'que joliz havia de ser era se meter um balaçõ no baixo da testa do Hermógenes', em que joliz parece uma combinação do francês joli + feliz mas é um arcaísmo registrado em dicionário como alegre, amável. (73)

"Mas não é menos verdade que há também palavras inventadas pelo autor, embora muito menos do que supõe o leitor desavisado, e estrangeirismos da autoria dele, tanto de línguas vivas como de línguas mortas." (73) P.ex. esmarte.

Usa da liberdade proporcionada pela língua de alterar a afixação e de fazer novas derivações, o que ocorre em outros textos e também na vida real, p.ex. "No cearense Dona Guidinha do Poço ocorrem sem estranheza talentuda, musculenta, folhiço, falaço, bondadosa, tristor, acelêro, etc." (73)

"Tudo isso aponta para um escritor que ama as palavras, que é leitor de dicionários, e que se move num universo linguístico - contemporâneo e passado - muito mais amplo do que aquele a que estamos habituados." (73)

"Guimarães Rosa tem portanto, um pé na linguagem do sertão e o outro pé na linguagem do mundo. Se, de um lado, explora as possibilidades do falar sertanejo, de outro explora campos linguísticos eruditos que nada têm a ver com o sertão. Se, de um lado, a matéria que põe em jogo é a matéria do sertão, de outro lado extrai as consequências máximas do imaginário do sertão; assim, coisa inédita na literatura brasileira, transforma seu romance numa demanda; e permite que as andanças dos jagunços ganhem visos de proezas de cavaleiros andantes, de luta do bem contra o mal. Se, de um lado, seu romance é o mais profundo e mais completo estudo até hoje feito sobre a plebe rural brasileira, por outro lado também é a mais profunda e mais completa idealização da mesma plebe. Se, por um lado, o falar sertanejo permite e justifica que o livro se arme como uma discussão metafísica sobre Deus e o Diabo, aceita-se esta discussão porque esses são conceitos que estão ao alcance do narrador-personagem para efetuar a tentativa de demarcar os limites entre a liberdade humana e a necessidade imposta pelo sistema de dominação. Mas, por outro lado, o contingente erudito da linguagem usada pelo escritor permite e justifica que Deus e o Diabo sejam, ao fim e ao cabo, concepções muito mais requintadas e que derivam tanto de Heráclito como do budismo." (74)

"A inegável sedução da linguagem carrega nela, a um só tempo, o sentir empático do escritor face ao homem do sertão e seu viver, e uma vasta experiência na tradição letrada que o escritor não põe em dúvida. Seguramente, o pé esquerdo de Guimarães Rosa está solidamente fincado no sertão; mas não menos seguramente, seu pé direito está alhures." (74)

Bibliografia:

GALVÃO, Walnice Nogueira.
      (1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva.

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